Cortesia
de wikipedia e jdact
Ficheiro:
Abu
«(…) A paisagem em torno à torre
era incôngrua e incongruamente povoada, como ocorre naqueles rébus onde se vêem
um palácio, uma rã em primeiro plano, um mulo com a albarda e um rei que recebe
a dádiva de um pajem. Neste, à esquerda, em baixo, um cavaleiro, seguro a uma
roldana presa a um perno, saía de um poço por força de estranhos cabrestantes
puxados para um ponto no interior da torre, através de uma janela circular. No
centro um cavaleiro e um viandante, à direita um peregrino ajoelhado que segura
uma âncora à guisa de bordão. Do lado direito, quase em frente, um pico, uma
rocha da qual se precipita um personagem com espada, e, do lado oposto, em
perspectiva, o Ararat, com a Arca encalhada no topo. Ao alto, nos ângulos, duas
nuvens, cada qual iluminada por uma estrela, irradiando sobre a torre os seus
raios oblíquos, ao longo dos quais levitam duas figuras, um homem nu envolvido
por uma serpente, e um cisne. No alto, ao centro, um nimbo sobre o qual havia a
palavra oriens em caracteres hebraicos, donde despontava a mão de Deus
que sustinha a torre por meio de um fio.
A torre movia-se sobre rodas,
tinha uma primeira elevação quadrangular, com janelas, uma porta, uma ponte
levadiça, na ala direita, depois uma espécie de balaustrada com quatro torreões
de observação, cada qual guardado por um soldado tendo numa das mãos um escudo (gravado
com caracteres hebraicos), e agitando uma palma com a outra. Mas só três dos quatro
soldados eram visíveis, sendo que o quarto se adivinhava apenas, oculto pela
mole da cúpula octogonal, sobre a qual se elevava um tibúrio, da mesma forma
octogonal, e deste despontava um grande par de asas. Por cima, havia outra
cúpula menor, com uma torrezinha quadrangular que, aberta em grandes arcos
suspensos por delgadas colunas, deixava ver no próprio interior um sino. Depois
uma cupulazinha final, de quatro gomos, acima da qual se estendia o fio mantido
no alto pela mão divina. Dos lados da cupulazinha, a palavra Fa/ma, e
sobre a cúpula um friso: Collegium Fraternitatis.
Não acabavam aí as bizarrices,
porque das outras duas janelas redondas da torre despontavam, à esquerda, um
braço enorme, desproporcional em relação às outras figuras, empenhando uma
espada, como se pertencesse ao ser alado inserido na torre, e à direita uma imensa
cometa. A cometa, por sua vez... Comecei a suspeitar do número de aberturas da
torre: rigorosamente regulares nos tibúrios, casuais no entanto nos lados da
base. A torre era vista apenas de dois quartos, em perspectiva ortogonal, e era
possível imaginar-se que por motivos de simetria as portas, as janelas e a vigia
que se viam de um lado, em baixo, estivessem reproduzidas igualmente do lado
oposto na mesma ordem Portanto, quatro arcos no tibúrio do sino, oito janelas
no tibúrio inferior, quatro torrezinhas, seis aberturas entre a fachada
oriental e a ocidental, catorze entre a fachada setentrional e a meridional.
Fiz os cálculos: trinta e seis aberturas. Trinta e seis. Há mais de dez
anos que esse número me obceca. E também o cento e vinte.
Os Rosa-Cruzes. Cento e vinte
dividido por trinta e seis dava, mantendo sete dígitos, 3,333333.
Exageradamente perfeito, mas talvez valesse a pena experimentar. Sem resultado.
Ocorreu-me que aquela cifra, multiplicada por dois, dava aproximadamente o número
da Besta, 666. Mas essa conjectura também se revelou por demais
fantasiosa. Impressionou-me de repente o nimbo central, sede divina. Eram muito
evidentes as letras hebraicas, que eu podia ver até mesmo da cadeira onde
estava. Mas Belbo não podia escrever letras hebraicas no Abulafia. Observei
melhor: eu as conhecia, sem dúvida, da direita para a esquerda, jod, he, waw,
he. Iahveh, o nome de Deus.
Com as vinte e duas letras fundamentais
que gravou, piasniou, combinou, sopeaou e permutou, ele deu forma a todo o
criado e ao que se há de formar no futuro. O nome de Deus... É claro. Lembrei-me
do primeiro diálogo entre Belbo e Diotallevi, no dia em que instalaram Abulafia
no escritório». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN
978-846-125-726-3.
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