segunda-feira, 29 de julho de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «O professor fitou os alunos sério com os braços cruzados sobre o peito. As mulheres consideravam-no fascinante, os homens sentiam respeito. Aparentava 40 anos, uma forma física invejável»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Pousou o telemóvel em cima da mesa e consultou o relógio. Eram onze horas em Telavive. O pequeno Ben já estava a trabalhar. Talvez em alguma reunião devido ao importante negócio em que o sigilo era a alma do sucesso. Um aperto no coração dizia-lhe que não. Levantou-se. Precisava de arejar as ideias, tinha de pensar. Calma, Ben Isaac. Ele não tem nada a ver com isto. Eles não iam encostar um dedo no rapaz. Mas não conseguia deixar de relembrar a mensagem no papel creme. Não o horário nem o local, mas o resto. Statu quo. Fazia-o arrepiar. O passado, sempre o passado a perseguir os passos dos justos. Os equívocos, as avidezes, a sobranceria da juventude não lhe davam descanso nem o olvidavam. Tal como Myriam, o Ben Júnior e Magda, o passado acompanhava-o sempre e, desta vez, vinha cobrar, à meia-noite, na piscina.

O professor fitou os alunos sério com os braços cruzados sobre o peito. As mulheres consideravam-no fascinante, os homens sentiam respeito. Aparentava 40 anos, uma forma física invejável, vigoroso na opinião feminina. Nunca sorria nem alterava o tom de voz. Sempre seguro. Fazia-os pensar, desafiava-os, pois essa era a sua função enquanto titular da cadeira de Filosofia da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Dissipava as dúvidas com novas perguntas, outro ponto de vista. Não vendia fácil a solução. A reflexão, o raciocínio eram a melhor arma de sobrevivência no mundo actual. Não os livraria da morte mas levá-los-ia longe. A Igreja dá sempre a solução nas Sagradas Escrituras. Está lá tudo. Ninguém precisa de andar perdido. Sim, porque a Bíblia é também um livro filosófico, explicou. Que desperdício, pensava a ala feminina. Material tão bom entregue nas mãos da Igreja, discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo, homem de Deus. As más-línguas, entenda-se tal expressão como fontes de origem desconhecida, logo pouco credíveis, diziam que ele era próximo do Papa Ratzinger. Desconhecia-se a veridicidade de tal afirmação que apenas podia ser considerada um rumor, por enquanto. E erótico também. E pornográfico, ouviu-se uma voz masculina dizer vinda da porta que logo revelou um homem mais velho, com barba, bigode e cabelo alvos. A idade transparecia, assim como um brilho de jovialidade que o acompanhava. Um sorriso de criança rebelde que fizera uma patifaria.
Jacopo, és sempre o mesmo, acusou o professor sem alterar o tom de voz. Estou a dizer alguma mentira, Rafael? Olhou para a turma de um modo provocador. A Bíblia é o primeiro livro histórico, fantástico, ficção científica, evangelho, thriller, romance de todos os tempos. Jacopo, precisas de alguma coisa?, perguntou Rafael com firmeza. Estou a meio de uma aula.
E eu peço imensa desculpa por vir meter juízo nestas cabeças e não o que vocês lhes metem... O que quer que seja, gozou o outro. Sabem que depois destes séculos e milénios tudo o que se lê na Bíblia continua a não ter qualquer comprovação arqueológica? Nem uma. E muitas das personagens, esboçou umas aspas no ar enquanto dizia a palavra, e localidades que aparecem citadas nesse livro tão importante para tanta gente não são citadas em mais lado nenhum? Apenas a Bíblia os menciona, mas como é a Bíblia... Parou de falar e assumiu um tom sério. Preciso de te dar uma palavra. Não pode esperar? É óbvio que não. E saiu para o exterior da sala. Rafael pediu desculpa à turma e prometeu que seria apenas um minuto. Que se passa?, questionou Rafael depois de sair e fechar a porta. O que é que não pode esperar? Yaman Zafer, disparou Jacopo. Rafael arregalou os olhos. Agora tinha toda a sua atenção. Yaman Zafer? Sim, confirmou o mais velho». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT