segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Cal para Caiar o Universo. Ruy Ventura. «Falou-se aqui em franciscanismo; também está presente nalgumas das quadras do livro em questão. Mas atenção. O fundamento que surge em todos estes textos é sempre a humildade»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cartas e quadras de Agostinho da Silva
«(…) Com este enquadramento, a minha leitura dos textos dele (confesso que não sou um conhecedor muito profundo da obra do professor Agostinho da Silva..., mas considero-me um leitor, que nos últimos catorze-quinze anos tem procurado sempre nunca o perder de vista) acabou por ser aclarada.

Tinha eu dezasseis anos, um dos primeiros livros do professor que comprei foi um volume de quadras inéditas. Coisa que eu, na altura, com a minha ingenuidade natural de dezasseis anos, achei estranha, num pensador que eu já conhecia de uma conferência sua na escola secundária onde eu era aluno. Considerava estranho uma pessoa como ele dedicar-se a escrever quadras. Pensava eu, na altura, que as quadras serviam apenas como veículo natural para os poetas da minha aldeia e arredores, poetas orais que usavam e usam as formas fixas facilmente memorizáveis porque não têm outro meio para se exprimirem. A pouco e pouco, a partir do momento em que comecei a ler essas quadras, cheguei a uma conclusão, conclusão essa que esqueci relativamente e, quando me foi lançado o repto para falar convosco, tentei relembrar e aprofundar. E a conclusão-convicção é esta: quando um autor escolhe um veículo estilístico, não o faz por acaso. E tem um propósito. Sendo o professor Agostinho da Silva um autor, um filósofo, que gostava de insubordinar, que gostava de inquietar e de surpreender, querendo evangelizar os outros com os seus pensamentos e ideias, com as suas contradições (que as tinha), precisava de encontrar instrumentos válidos para esse objectivo. As suas metas, segundo me parece, não eram de elitismo. Ele tinha, na minha opinião, como objectivo divulgar o seu pensamento entre todas as camadas da sociedade. Só assim poderia educar Portugal. Agostinho da Silva deve ter tido consciência de que, ao usar um meio tão simples quanto as quadras (que o povo, as populações menos instruídas, reconhece facilmente também como seu), seria mais fácil levar as pessoas a entenderem melhor ou a aderirem melhor ao seu pensamento. Isto vai ao encontro de uma realidade apontada por uma grande estudiosa da literatura tradicional, Ana Paula Guimarães: por debaixo de vestimentas muito simples podem transmitir-se assuntos muito sérios.
Nesse livro, Quadras Inéditas, vários temas são focados. Passam pela sua autofiguração como poeta, vão ao entendimento da vida como poema, visionam Deus como um poeta, valorizam a imaginação, a interioridade, o mistério como elemento essencial de uma vida integral, reflectem sobre a relação entre o serviço e a autoridade, entre a aprendizagem e os mestres, sobre despojamento material, o estoicismo e a humildade. Falou-se aqui em franciscanismo; também está presente nalgumas das quadras do livro em questão. Mas atenção. O fundamento que surge em todos estes textos é sempre a humildade, humildade que não é apenas falsa modéstia (não a tinha), mas a procura do húmus, daquilo que é mais verdadeiro e mais fértil no ser humano. Essa humildade levava-o, por exemplo, a dizer que não era poeta. Abre esse livro de quadras inéditas com esta estrofe:

Se estas quadrinhas não prestam
com certeza as compus eu
mas se boas foi poeta
além de mim que mas deu.

Refere, depois, quem é o Poeta para ele:

O mundo é só o poema
em que Deus se transformou
Ele existe e não existe
tal a pessoa que sou.

A vida, para Agostinho, está toda edificada enquanto poema, isto é, enquanto harmonia entre o conteúdo e a forma.

Tudo o que faço na vida
é só linha de poema
que cada um ordenará
conforme for seu esquema».

In Ruy Ventura, A Cal para Caiar o Universo, www.arquivors.com/ruy_acal.pdf, 2007, Wikipedia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT