terça-feira, 2 de julho de 2019

Bonus Rex ou Rex Inutilis. José Varandas. «Neste trilho que os reinos europeus vão percorrendo para a sua autonomia estão em causa outros aspectos vitais à sociedade. Não é apenas a questão militar aquela que provoca desagrado ao clero…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Periferias e o Centro. Redes de poder no reinado de Sancho II (1223-1248)

Com a devida vénia a José Varandas

«Desde há muito que entre os historiadores da sociedade medieval europeia se  consolidou a noção de que durante o século XIII se verificaram mudanças substanciais nos comportamentos e valores sociais, culturais e políticos dos vários reinos da Cristandade. Dentro das diversas alterações que aquele período conheceu uma delas sobressai em absoluto. A noção de que este é o século onde numa Europa profundamente Católica, a Igreja perde alguma da sua influência e capacidade de governação. Não no que concerne ao seu universo específico, aí no plano espiritual e na gestão dos seus patrimónios, continuam exímios e o modelo de organização a que chegam é quase perfeito. A viragem, ou seja o problema, está na maneira como foram administrando e actuando sobre a sociedade civil. As grandes modificações que os movimentos reformistas e de transformação cultural ocorridos ao longo do século XII foram introduzindo e consolidando, e que encontravam cada vez mais eco na sociedade laica, tendiam a escapar ao controlo da Igreja. A Europa secularizava-se em todos os campos onde existia actividade humana: na arte, na literatura, na economia, nas instituições e, claro, na política. Não cabendo a este trabalho o estudo profundo dessas transformações, das suas causas e consequências, interessa-nos contudo explorar um dos caminhos visíveis e determinador na forma como a opinião pública daqueles tempos se alterou. Esse caminho é o que leva à laicização da sociedade medieval europeia e da forma como ela se expressa na realidade portuguesa, em especial durante o reinado de Sancho II. A afirmação de novos valores políticos na Europa, onde o papel do soberano e da sociedade laica ganham cada vez maiores adeptos e a ideia de Reino, cada vez mais, se consubstancia, numa realidade tendencialmente homogénea e coerente, garantida pela continuidade física e política entre o centro de poder e as fronteiras e, claramente desfavorável à manutenção dos velhos subsistemas feudais e esferas de influência regionais.
No processo de laicização da sociedade percebemos que o poder se transfere da Igreja para o Estado, em muitas das suas componentes. Desde a alta Idade Média que a Igreja controlava o sistema político europeu. A ênfase atribuída à ideia de Cristandade sobrepunha-se (ou devia sobrepor-se no entender da Igreja) a qualquer outra definição. O indivíduo devia a sua obediência a esta noção. Em primeiro lugar era um cristão, era aqui que estava a base da sua existência, depois vinham as outras ligações, onde as nacionais ocupavam o último lugar da hierarquia (na realidade francesa anterior ao século XIII a escala de valores para um indivíduo podia ser definida desta forma: em primeiro lugar era um cristão, depois um borguinhão e francês só em terceiro lugar; neste último caso ser francês significava apenas ser natural do norte da actual França).
A Christianitas era o laço mais forte entre os europeus, criando a expectativa de uma Europa pan-nacional, com um nacionalismo específico e traduzido nos exércitos que se armavam para as Cruzadas (muitos autores falam da ideia de cidadania europeia, apontando o facto de clérigos e intelectuais especializados ou cavaleiros poderem encontrar emprego em qualquer nação da cristandade, independentemente do seu país de origem). Promovia-se a livre circulação e estabelecia-se um controlo supranacional sobre todos os aspectos da sociedade europeia onde o poder residia nas mãos do papa. Era, para o clero, uma situação satisfatória. Politicamente, controlavam os diferentes reinos europeus, cujas dificuldades de coexistência pacífica eram conhecidas. As disputas de fronteiras entre reinos e entre casas senhoriais eram uma constante; a guerra entre países cristãos uma certeza política, situação que era intolerável para a Igreja, que pregava os valores da paz e da justiça. E este aspecto leva-nos por um novo caminho. Parece-nos ser a Igreja a primeira a abrir o ferrolho à entrada de novas ideias, em especial aquelas que podiam vir a alterar alguns modelos de comportamento na liderança dos reinos. Se os ideais de paz e de justiça apregoados pela Igreja desde sempre pudessem ser garantidos pela fortificação da ideia de soberania do rei, tanto melhor. De certa forma os eclesiásticos ocidentais abriam o caminho a reformas profundas, que a breve trecho iriam contribuir para uma inevitável laicização da cultura política europeia.
Neste trilho que os reinos europeus vão percorrendo para a sua autonomia estão em causa outros aspectos vitais à sociedade. Não é apenas a questão militar aquela que provoca desagrado ao clero, também o aumento das transacções comerciais e da capacidade produtiva os deixa apreensivos. A expansão da economia medieval, em particular a dos centros urbanos, e a ocupação de novos espaços precipita a necessidade de existência de governos centrais mais organizados e fortes. Se a Igreja pouco faz pelo desenvolvimento das actividades comerciais, por outro interessa-lhe (e participa activamente nisso) que os sistemas monárquicos sejam mais eficientes e capazes na administração e controlo dos respectivos reinos». In José Varandas, Bonus Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro. Redes de poder no reinado de Sancho II (1223-1248), Ude Lisboa, FdeLetras, DdeHistória, Tese de Doutoramento em História, História Medieval, 2003, Wikipedia.

Cortesia de Ude Lisboa/ FdeLetras/ DdeHistória/JDACT