terça-feira, 9 de julho de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «… educado interesse mas que na verdade te faz sentir motivo de profunda desaprovação. Eu era um bárbaro, diziam eles, e essas subtilezas me haveriam sempre de escapar»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) Diotallevi estava à porta de sua sala, e ostentava indulgência. A indulgência de Diotallevi era sempre ofensiva, mas Belbo parecia aceitá-la, de facto, com indulgência. Não te servirá para nada. Não vais querer rever ali os manuscritos que não lês? Serve para classificar, para ordenar índices e actualizar verbetes. Poderei escrever um texto meu, não o de outros. Mas juraste que nunca mais escreverias nada teu. Jurei que não afligiria o mundo com outro manuscrito. Disse que havendo descoberto não ter o estofo do protagonista..., serias um espectador inteligente. Isso já sei. E daí? Daí que até o espectador inteligente, quando volta de um concerto, cantarola um trecho do segundo movimento. O que não significa de forma alguma pretender regê-lo no Carnegie Hall... Quer dizer então que farás experiências de escrita solfejada para descobrir que não deves escrever. Seria uma escolha honesta. É mesmo? Diotallevi e Belbo eram ambos de origem piemontesa e dissertavam amiúde sobre aquela capacidade que dos piemonteses que hão por bem de ouvir-te, com toda a cortesia, olhar-te bem nos olhos, e perguntar É mesmo?, num tom que parece de educado interesse mas que na verdade te faz sentir motivo de profunda desaprovação. Eu era um bárbaro, diziam eles, e essas subtilezas me haveriam sempre de escapar.
Bárbaro?, protestava. Mas eu nasci em Milão, e a minha família é de origem valdostana... Tolice, diziam, conhece-se um piemontês imediatamente pelo seu cepticismo. Mas eu sou céptico. Negativo. É apenas incrédulo, o que é diverso. Eu sabia porque Diotallevi duvidava de Abulafia. Ouvira dizer que com ele se podia alterar a ordem das letras, de modo que um texto poderia gerar o seu próprio contrário e prometer sombrios vaticínios. Belbo tentava explicar-lhe. São jogos de permutação, dizia, não chamas a isso Temurah? Não é assim que o rabino devoto procede para ascender às portas do Esplendor? Meu caro amigo, dizia-lhe Diotallevi, jamais hás de compreender. É verdade que a Torah, refiro-me à visível, não passa de uma das possíveis permutações das letras da Torah eterna, como Deus a concebeu e a confiou a Adão. E que, permutando-se ao longo dos séculos, as letras do livro, poder-se-ia chegar à Torah originária. Mas não é o resultado que conta. E o processo, a fidelidade com que farás girar ao infinito o moinho da oração e da escritura, descobrindo a verdade pouco a pouco. Se esta máquina te desse de súbito a verdade, não a reconhecerias, porque teu coração não estaria purificado por uma prolongada interrogação. Além do mais, num escritório! O Livro deve ser murmurado num exíguo cubículo de gueto, onde dia após dia aprendes a curvar-te e a mover os braços estendidos ao longo do corpo; entre a mão que segura o Livro e aquela que o folheia, não deve haver quase espaço, e para humedecer os dedos deves levá-los verticalmente aos lábios, como se mordiscasses o pão ázimo, atento em não perder a mínima migalha. A palavra precisa ser mastigada lentissimamente, e deves dissolve-la e recombiná-la depois de a deixares fundir sobre a língua, atento a que ela não respingue sobre a túnica, pois se uma letra se evapora, quebras o fio que está para se unir às sefirot superiores. Abraham Abulafia dedicou sua vida a isso, enquanto o vosso santo Tomás se empenhava em encontrar Deus através dos seus cinco sendeiros. A sua Hokmath ha-Zeruf era ao mesmo tempo ciência da combinação das letras e ciência da purificação dos corações. Lógica mística, o mundo das letras e do seu vórtice de permutações infinitas é o mundo da beatitude, a ciência das combinações é a música do pensamento; mas tenhas cuidado em mover-te com lenteza e com cautela, porque a tua máquina poderia proporcionar-te o delírio, e não o êxtase. Muitos dos discípulos de Abulafia não souberam manter-se naquela soleira estreitíssima que separa a contemplação do nome de Deus da prática da magia, da manipulação dos nomes para deles se fazerem talismãs, instrumentos de domínio sobre a natureza. E não sabiam, como tu não sabes, e nem sabe a tua máquina, que cada letra está ligada a um dos membros do corpo, e se deslocas uma consoante sem lhe conheceres o poder, uma das tuas articulações pode mudar de posição, ou natureza, ver-te-ás terrivelmente estropiado, pela vida inteira, e, em teu interior, por toda a eternidade. Queres saber uma coisa, dissera-lhe Belbo naquele mesmo instante, em vez de me dissuadir, até me encorajaste. Não é que tenho às mãos, e sob o meu comando, como teus amigos tinham o Golem, o meu Abulafia pessoal. Vou chamá-lo de Abulafia, Abu para os íntimos». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT