domingo, 21 de julho de 2019

O Amor nos Tempos de Cólera. Gabriel García Márquez. «Disse: eu falo depois com o prefeito. Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com a sua arte…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Apesar disso, sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingénuo que tinha de manejar o poder do próprio nome acabaram por lhe valer menos afectos do que merecia. As instruções ao comissário e ao praticante foram precisas e rápidas. Não haveria autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar que a causa da morte tinham sido as emanações do cianureto activado na vasilha por algum ácido de fotografia, e Jeremiah de Saint-Amour entendia muito do assunto para não fazê-lo por acidente. Diante de uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica do seu modo de ser: não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado de óbito. O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a sorte de estudar os efeitos do cianureto de ouro num cadáver. O doutor Juvenal Urbino tinha ficado espantado de não havê-lo visto na Escola de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar seu rubor fácil e o seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade. Disse: não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunidade um dia destes. E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis suicídios que lembrava, aquele era o primeiro com cianureto que não tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então na sua maneira de falar. Quando encontrá-lo, preste bem atenção, disse ao praticante: costumam ter areia no coração.
Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subalterno. Ordenou-lhe que desse um jeito em todas as instâncias para que o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse: eu falo depois com o prefeito. Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com a sua arte muito mais do que carecia para viver, de modo que em algumas das gavetas da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do enterro. Mas se não o acharem, não importa, disse. Eu me encarrego de tudo. Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de nenhum modo. Disse: se for necessário, falo com o governador. O comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico do mestre exasperava até os seus amigos mais chegados, e estranhava a facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário, mortificado com sua própria impertinência, tratou de se desculpar. A minha ideia é que este homem era um santo, disse. Era algo ainda mais raro, disse o doutor Urbino: um santo ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem.
Remotos, do outro lado da cidade colonial, se ouviram os sinos da catedral chamando à missa solene. O doutor Urbino repôs os óculos de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da corrente, que era quadrado e fino, e a sua tampa se abria com uma mola: estava a ponto de perder a missa de Pentecostes. Na sala havia uma enorme máquina fotográfica sobre rodas como as dos jardins públicos, e o telão de um crepúsculo marinho pintado com tintas artesanais, e as paredes estavam forradas de retratos de crianças nas suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho, o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o revestimento paulatino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas das tardes de xadrez, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura, governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não restariam sequer as cinzas de sua glória». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.

Cortesia PdomQuixote/JDACT