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«(…) Agora…, com meu tio Ángel é
diferente. Letrado, arguto, ambicioso. Tudo sabe dos segredos de Jaime I, pelas
leituras das crónicas que ficaram, e o rei Jaime foi criado numa casa templária,
a mesma onde meu tio tem peso. Dizem que só ele sabe onde estão os tesouros
mais valiosos da ordem, na Catalunha. Além disso é estimado pelo mestre
provincial, pelo grão mestre em França, pela nobreza companheira de armas dos
monges guerreiros. E por fim é tido em alta conta pela coroa de Aragão, em
retribuição de tanta fidelidade. Chegamos. No largo da catedral, apinhado de
gente, mulheres e rapazes enxotam galinhas e gansos atrevidos. Depois precipitam-se
para a entrada da Carrer dos Condes, mal as trombetas anunciam o cortejo saído
da Plaça del Palau. Em breve o avistamos em marcha muito lenta, por causa de
velhos arcediagos e bispos das cidades mais importantes dos reinos em redor, já
trôpegos, a medir cada passada.
Por nada perderia este
espectáculo, dois quadrados de gente com trinta e cinco palmos de lado,
guardados por cavaleiros montados em animais de cabeçada de ouro e prata, nas
margens exteriores. O lado do meio é comum às duas formações. Composto por uma
fila de arcebispos das dioceses vizinhas, clero mais importante, antecede o
pálio dourado que alberga, sob o tecto de seda com as armas de Aragão e
Portugal, os membros da família real, os confessores particulares. Dona Isabel
vem ao centro, de olhos postos no chão, toda vestida de azul pálido e véu
branco, cingido com coroa discreta. Logo atrás vêm damas, donzelas da corte,
atrás delas a nobreza principal sob a mesma coroa, cavaleiros e convidados de
outros reinos vizinhos. É um luzir de pedras e brilho de trajes que ofusca os
meus olhos de quase vagabundo. Bela, toda esta pompa, que nem assim diminui meu
desejo de regressar a Penedès, às sestas na choça quando o tempo aquece, ao
abrigo das paredes de pedra quando chove e o cheiro de pão cozido entra pelos
sentidos, acalmando a fome. Isso farei daqui a nada, no fim da cerimónia, garantida
a bênção da minha única tia. Deve estar morta por me ver pelas costas, centrada
na viagem para Zaragoza com a sua pequena infanta.
Comovente,
o silêncio na catedral de Barcelona de planta quadrangular, já preparada para
despir velhos trajes e vestir a majestade do gótico. Dona Isabel profere a
fórmula de aceitação com voz firme, olhos baixos como quase sempre, postos num
lugar indefinido. Desmente os apenas doze anos na altura, na perfeição de
formas, na determinação com que repete as palavras decoradas nas últimas
semanas. Ego Helisabeth fillia
excellentis domini Petri del gratia Illustris Regis Aragonie tredo corpus meum
in uxorem legitimam domino Dionisio dei gratia Regis Portugalie et Algarbi…
É
uma cerimónia breve, não dispensa as bênçãos numa igreja do reino de
acolhimento. Mas cá fora o povo chama pela nova rainha, acotovelando os guardas
reais para se apinhar no portal. Alguns vêm de fora, pelas ruas novas rasgadas
nas muralhas, à espera de uma migalha de grandeza que lhes dê sentido aos dias,
sempre iguais. Os guardas continuam a resistir. Só a muito custo o cortejo
consegue abrir caminho à passagem da infanta, de olhos baixos ainda, guardada
por suas damas». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008,
ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT