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de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) O cruzeiro não podia ter
vindo em pior altura. As negociações com os compatriotas israelitas alcançavam
o período crucial e teria de ser Ben Júnior a concluir o negócio, em Telavive.
Era a prova de fogo do rapaz. Enfiou-se no MS Voyager of the Seas, um paquete
de enormes proporções com 15 decks, mais uns milhares de pessoas. Chamavam-no
de hotel flutuante e não estavam errados. Tinha casino, spa, capela para
casamentos, pista de gelo, cinema, teatro, centro comercial, tudo para fazer
esquecer os viajantes que estavam no mar e não em terra. E conseguiam-no fazer
com louvor. O irónico é que Bem Isaac podia comprar o seu próprio barco e
tripulação e navegar ao seu gosto, mais confortavelmente. Porém, Myriam fora
inflexível. Um cruzeiro como os dos casais normais. Discutir com Myriam não era
opção. Comprou cinco quartos no deck 14 para ficar no do meio e não ser
incomodado por vizinhos desagradáveis. Claro que optou por esquecer-se de
informar Myriam desse pormenor. Ben Isaac era assim. Condescendia até certo
ponto e, depois, arranjava forma de fazer as coisas à sua maneira. Tentava
poupar Myriam a tudo. Problemas com o negócio, os acidentes do filho, a cura de
desintoxicação do irmão dela, as amantes do pai, noutros tempos. Não permitia
que nada a incomodasse, fechava-a numa redoma de estabilidade, embora isso
originasse outros problemas, como a falta de atenção, as longas ausências e a
carência de afectos. Myriam insurgia-se e Ben Isaac submetia-se à sua vontade,
adaptando-se à nova realidade. O segredo do seu sucesso foi sempre esse.
Assim o encontramos a ler o
jornal na mesa 205 do restaurante do deck 14. Myriam fora ao ginásio fazer um
pouco de natação juntar-se-lhe-ia em seguida. As manhãs eram sempre iguais
desde que entrara no titânico paquete. E este israelita desterrado em Londres
desde a infância, onde fez fortuna, não se importava. Desde que Myriam
estivesse feliz, ele estava feliz. Não importava ter noticias da apenas à
noite. Era o preço que tinha de pagar por inúmeras noites de ausência. Myriam
merecia o sacrifício. O empregado trouxe-lhe o café. Bom dia, doutor Isaac.
Como se sente hoje? Um sorriso genuíno a atravessar o rosto. Bom dia, Sigma.
Muito bem, obrigado. Sigma era das Filipinas e um excelente empregado de mesa,
na opinião de Ben Isaac. Vai ficar-se apenas pelo café? Sim. Só café. Não
consigo comer antes das dez. Com certeza, doutor Isaac. Se precisar de mais
alguma coisa não hesite em chamar-me. Desejo-lhe um dia muito agradável. Obrigado,
Sigma.
Ben Isaac continuou a ler o The Financial Times, por
deformidade profissional. Nenhuma leitura lhe dava mais gozo. Analisar o
mercado, ler nas entrelinhas, avaliar oportunidades de investimento. Só numa página
conseguia idealizar milhões de libras em receita. Se fosse caso disso
aconselharia Ben Júnior a investir ou a ter cuidado com determinado título. Levantou
a chávena de café e tragou um pouco. Preto, puro, sem açúcar. Que melhor forma
de encarar o dia? Só ao pousar a chávena reparou num pequeno envelope na borda
do pires. Que estranho. Sigma não o mencionara. Pousou o jornal sobre a mesa
com a intenção de retomar a leitura e abriu o envelope. Dentro um pequeno papel
em tom creme. Meia-noite piscina
statu quo.
Ben
Isaac releu o papel três vezes. Olhou ao redor das mesas que o ladeavam. Poucas
pessoas se haviam levantado. Uma família de cinco ao fundo, um casal a três
mesas de distância. Ninguém suspeito, mas quem via caras não via corações, tão-pouco
intenções. Avistou Sigma que trazia uma bandeja e se dirigia à mesa da família
de cinco, repleto de croissants, pão, queijo, fiambre. Sigma, por favor, chamou
Ben Isaac. O filipino acercou-se dele. Quem lhe deu este envelope?, perguntou,
tentando encobrir a inquietação que o acometia. Qual envelope, doutor Isaac?
Ninguém me deu nenhum envelope. Este..., mas desistiu. Aquilo estava muito
acima da compreensão de Sigma. Esqueça. Foi confusão minha. Obrigado. Precisa
de mais alguma coisa, doutor Isaac? O israelita levou alguns instantes a
responder que não. Estava tudo bem. Apesar do ambiente fresco, aclimatado pelo
ar condicionado, Ben Isaac transpirava. Levou o guardanapo à testa para limpar
um pouco da película que se formava. Aquilo incomodara-o. Levou a mão ao bolso
dos calções que Myriam o obrigara a usar e tirou o telemóvel. Dedilhou a memória
telefónica e deu luz verde para a chamada se efectuar. Pouca tempo depois soou
o bip que indicava que o telefone destinatário estava a tocar, ou vibrar ou o
que quer que os telefones fazem, hoje em dia. Atende. Atende. Atende. Deu por
si a suplicar, embora fosse sua intenção apenas pensar sem falar. Nada. Não
obteve resposta. Segundos depois atendeu o gravador de chamadas. Ligou para Ben
Isaac Júnior…» In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
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