quinta-feira, 25 de julho de 2019

O Lirismo de Caio Valério Catulo Maria Glória Novak. «O seu credo é a arte pela arte. E estão ligados a uma Escola que se conhece como Alexandrina»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma Leitura do seu Poema sobre um Barco
«Catulo, o primeiro grande lírico da língua latina, poeta nouus, na expressão de Cícero, e herdeiro da poesia de Alexandria, conserva a sua independência em relação ao alexandrinismo e parece que supera os seus modelos: o seu génio romano ilumina a sua poesia. Mesmo o poema sobre o barco, por exemplo, é novo sob a arte de Catulo e é indubitavelmente italiano. E revela a técnica do Poeta, e um sentimento de cores bem marcadas: o poema sobre o barco, aparentemente muito simples, tem algo de muito profundo».

«Pouco se sabe sobre a vida de Catulo. Pode-se ter como certo que o local de seu nascimento é Verona, que fica na Gália Transpadana, pois foi sempre chamado Veronense. Teria vivido de 87/82 a 54/52 a.C., ou seja, na época de César, de Cícero, de Lucrécio: época de um dos maiores documentos poéticos do Ocidente, época do apogeu da prosa latina, e das mais conturbadas da política romana. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, não se encontra em Catulo uma poesia politica, mas tão-somente invectivas pessoais, a Pompeu, por exemplo, a César, a Mamurra (era o principal engenheiro de César na Gália, onde enriqueceu; foi invectivado por Catulo e glosado por Horacio). Não sabemos como ou quando chegou a Roma. Parece claro que frequentou a alta sociedade intelectual romana, como se pode depreender dos nomes dos destinatários dos seus poemas e de sua amizade a Comélio Nepos, a quem dedica o seu livro, e que também o cita na sua obra. Igualmente sabemos que acompanhou Caio Mémio à Bitínia, de 57 a 56. Onde estudou não sabemos ao certo. Pode ter sido aluno do gramático e poeta Valério Cato, fazedor de poetas, igualmente originário da Gália, e a quem alguns estudiosos atribuem grande influência no desenvolvimento da poesia nova em Roma. O que vem a ser essa poesia nova?
Catulo pertence a um período de transição entre o antigo e o moderno.
De um lado, Lucrécio e o De rerum natura, de linguagem arcaizante, inspirada em Énio: tradicional e clássico. De outro ospoetae noui (como diz Cícero), entre os quais Hélvio Cina, que escreveu um poemeto sobre o mito de Mirra e Adónis, poemeto para o qual Catulo prognosticou a imortalidade, mas do qual só nos restam três versos; Licínio Calvo, que o Veronense lembra no poema 53 e, adiante, consola pela perda da esposa, e que teria escrito um poemeto a Ion, filho de Creúsa e Apoio; e, naturalmente, o próprio Caio Valério Catulo. Esses poetas são, como diz Fordyce (1973), os que rompem com a tradição da poesia latina e lhe dão estilo e espírito novos, individuais, subjectivos e românticos, e novos padrões de técnica. Desprezados por Cícero, esses poetas se sabem novos e querem sê-lo. O seu credo é a arte pela arte. E estão ligados a uma Escola que se conhece como Alexandrina. Sobre o alexandrinismo, lembremos ainda Fordyce: a poesia de Alexandria, chegando ao fim de longa história poética, era uma literatura de exaustão, procurando novidade na forma e no conteúdo porque, segundo afirmara Calímaco de Cirene, tudo já havia sido feito. Caracterizam-na a erudição e o prazer estético. Os dois géneros mais em voga são, então, a elegia e o conto épico; além desses, encontram-se o epigrama, o idílio e o mimo. Os maiores nomes da poesia de Alexandria, ao lado de Calímaco, são Filetas de Cós e seus poemas de amor, Apolónio de Rodes e o seu poema épico sobre os Argonautas, Teócrito de Siracusa (Cós e Alexandria) com seus idílios, e Arato de Solos, autor dos Fenomenos. Paradoxalmente, podemos dizer que os poetas novos se opõem aos alexandrinos porque, embora neles se inspirem, são antes de tudo romanos, e o seu génio romano ilumina a sua poesia. Os estudiosos são quase unânimes em afirmar que esses poetas não apenas escreviam sobre as suas paixões mas sentiam-nas, e que a sua poesia não brotava da inteligência mas da sensibilidade, respirando paixão e ardor de vida. E aí residiria a grande diferença entre os verdadeiros alexandrinos e os alexandrinos romanos.
Catulo será provavelmente o maior destes e talvez o maior entre todos os alexandrinos. E o mais ardente poeta do eu das literaturas clássicas; e a sua poesia, embora tecnicamente perfeita, é um grito apaixonado e genial, que brota da mais profunda alma romana, e, no entanto, é moderno. Ao lado de poemas curtos em metro variado, principalmente jambos (os cinquenta e nove primeiros da colecção, assim como a temos) deixou-nos epigramas em dísticos elegíacos, os quarenta e nove últimos, poemas curtos, à exceção do que tem o número 76 (Si qua recordanti), que tem vinte e seis versos, e nove poemas de inspiração erudita e bem alexandrina, em geral longos (variando de quarenta a quatrocentos e oito versos). Entre estes, encontram-se: um que chora a morte do irmão (65), outro (66) que é a tradução da cabeleira de Berenice, de Calímaco, e também o epitalâmio de Tétis e Peleu (64), o mais longo». In Maria Glória Novak, O Lirismo de Caio Valério Catulo, Uma Leitura do seu Poema sobre um Barco, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USPFFLCH, Língua e Literatura, 1996.

Cortesia de DLCV/USPFFLCH/JDACT