sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «No dia seguinte, muito cedo, pela fresca, metemo-nos a caminho em direcção a Silves, que eram bem seis léguas andadas de Lagos. A lonjura da jornada não amedronta franciscanos…»

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A Letra Pitagórica
«(…) Vales, furnas, grutas, os ecos do vento e do mar, planícies escorridas, os caminhos da alma e da vida!... Lanço atrás um olhar, à estrada, como a querer com os olhos retroceder e recordar todas as vias percorridas nestas últimas semanas. E quantas foram!... Tínhamos descido, em nosso vagar, por Ferreira, Odemira, Algezur e, deixando a orla marítima e atravessando a serra do Espinhaço, atingíramos a vila de Lagos, cujo casario muito branco, a brilhar ao sol, já extravasava das velhas muralhas torreadas, de pedra tisnada, de tal maneira que o seu alcaide, Diogo Silva, andava empenhado no levantamento de uma segunda cerca que envolvesse toda a povoação e a protegesse. Depois de passarmos pela Ermida da Senhora dos Aflitos e, mais perto das primeiras casas, pela de São João Baptista, metemos pelo emaranhado das ruelas estreitas, seguimos pela gafaria, com o seu hospital e a Ermida de São Lázaro, chegamos à Ribeira dos Touros, junto às muralhas, onde se haviam edificado as casas da Misericórdia, os Paços do Concelho, a Vedoria, a Portagem e se erguia o pelourinho, e pela Porta da Vila entramos a cerca, atingimos a Igreja de Santa Maria, onde por algum tempo se encontrou o túmulo do infante Henrique, antes de ser trasladado para Santa Maria da Vitória, caminhamos colados à frontaria do Convento de São João de Deus, de irmãos hospitalares, ao pé da Ermidinha de Nossa Senhora da Graça e da de São Pedro, onde os mareantes têm a sua irmandade do Corpo Santo, e chegamos finalmente ao Convento de São Francisco, dos nossos irmãos capuchos, fundado em 1518 pelo bispo Fernando Coutinho. Aí, apresentadas as nossas obediências por irmão Diogo, fomos acolhidos com grande alegria e mostras de cristão acatamento e repousamos essa noite. Na manhã seguinte, depois de rezarmos as matinas, saímos a visitar a vila mais de espaço. Chegados ao Palácio dos Governantes, saímos pela Porta do Mar e fomos dar à Ribeira das Naus. Formosa coisa de ver a baía toda engalanada de embarcações, algumas das quais de Milão, de Génova, de Veneza, e a grande azáfama que, mais adiante, fervia com o afadigado trabalho dos pescadores que chegavam do mar, os barcos carregados de pescaria. Ao correr da ribeira, a seguir à lota, estendia-se o mercado com as suas tendas das mais variadas mercadorias, os pregões dos vendedores, na sua maioria judeus. Meti conversa com alguns que nos disseram do seu receio das perseguições, de que a todo o passo eram vítimas. Mal pudessem sairiam do reino em busca de terras mais seguras para as suas vidas e haveres, judeus como estes e também queixosos e receosos, sobretudo depois da notícia que tiveram da matança dos seus irmãos em Lisboa, em tempo de el-rei Manuel I, e de outros sinais de ódio e perseguição aos cristãos-novos, encontramos nós muitos noutras terras que visitamos. Além das igrejas, ermidas e casas que havíamos avistado de raspão na tarde anterior quando chegáramos à vila e que agora percorríamos com demora, admiramos ainda a vetusta Ermida de Santo Amaro, a de Santa Bárbara e a da Senhora da Conceição, e o edifício do Convento dos Carmelitas. Os mareantes genoveses e milaneses haviam mandado construir três ermidas da sua devoção: a de São Brás, a de São Roque e a de Porto Salvo, mostrando bem com isso quanto ficavam gratos à divina Providência sempre que chegavam àquele porto seguro.
No dia seguinte, muito cedo, pela fresca, metemo-nos a caminho em direcção a Silves, que eram bem seis léguas andadas de Lagos. A lonjura da jornada não amedronta franciscanos e a mim muito menos, que qualquer trecho de paisagem, recorte de árvore, canto de ave, colorido de flor ou rescendência de arbusto é quanto baste para cair em êxtase quase místico. Por vezes era a branda encosta escorrendo até ao vale a neve das amendoeiras. Outras vezes caminhávamos por um chão de tojo, de sargaço e rosmaninho, de serpão, arruda, morrião e tomilho, entre espinheiros agrestes e estevas ostentando nas flores a sépia das cinco chagas. Seguíamos pela sombra das alfarrobeiras e das figueiras, cortávamos caminho por sob um laranjal onde cantavam melros». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT