terça-feira, 27 de agosto de 2019

Histórias Íntimas. Mary del Priore. «Os grandes pintores do período, como Veronese, o veneziano, preferiam mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola, bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas»

jdact e wikipedia

Da Colónia ao Império
Onde se Esconde o Desejo
«(…) Coube-lhes deixar o registo do que era percebido e apreciado. Eis as impressões de um dos fundadores da Austrália, de passagem pelo Rio de Janeiro, em 1787:

As mulheres, antes da idade de casar, são magras, pálidas e delicadas. Depois de casadas, tornam-se robustas, sem, contudo, perder a palidez, ou melhor, certa cor esverdeada. Elas têm os dentes muito bonitos e melhor tratados do que a maioria das mulheres que habita países quentes, onde o consumo de açúcar é elevado. Os seus olhos são negros e vivos e elas sabem como ninguém utilizá-los para cativar os cavalheiros que lhes agradam. Em geral elas são muito atraentes e suas maneiras livres enriquecem suas graças naturais. Tanto os homens quanto as mulheres deixam crescer prodigiosamente os seus cabelos negros: as damas em forma de grossas tranças que não combinam com a delicadeza dos traços. Mas o hábito torna familiares as mais estranhas modas. Estando um dia na casa de um rico particular do país, comentei com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas e acrescentei que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem, para demonstrar que eu estava errado, chamou sua mulher, desfez o seu penteado e, diante de meus olhos, puxou duas longas tranças que iam até ao chão. Ofereci-me, em seguida, para rearranjá-los, o que foi aceito com simpatia.

No passado, os cabelos femininos, ou as chamadas crinas, eram altamente valorizados, aliás, como o são hoje, em nossa cultura. Mas quais critérios inspiravam erotismo e atracção física na Idade Moderna? É bem verdade que as características físicas das nossas belas estavam um tanto distantes das do modelo renascentista europeu de beleza e sensualidade. Os grandes pintores do período, como Veronese, o veneziano, preferiam mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola, bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo devia ser entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco, segundo um literato francês. Como se dizia então, a construção tinha que ser de boa carnadura. A metáfora servia para descrever ombros e peito forte, suporte para seios redondos e costas em que não se visse um sinal de ossos. Até os dedos afuselados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas, finalizadas em pequenos arcos brancos. Jóias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas e da tinta de jenipapo que recobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementos anatómicos e erotismo.
Mas o que se via dessa beleza? Nada. Os olhares masculinos brilhavam ao passar uma mulher... Coberta de cima a baixo! A imaginação sente-se singularmente excitada quando a gente vê essas figuras semelhantes às freiras, envoltas totalmente num manto preto, das quais mal se percebem o pezinho delicado e elegantemente calçado, um braço torneado e furtivo, carregado de braceletes e um par de olhos, cujo vivo fulgor as rendas não conseguem cobrir, movendo-se com leveza e graça sob os trajes pesados, confessava um viajante estrangeiro. Era a velha fórmula: o que mais se esconde mais se quer ver. O fascínio de um olhar camuflado ou do pezinho da misteriosa criatura funcionava como uma isca para o desejo. Mulheres cobertas por véus aguçavam a curiosidade e o apetite masculino. Não à toa, os poetas cantavam apenas o que era possível enxergar, como Bocage: porém vendo sair d’entre o vestido/ um lascivo pezinho torneado... Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil colónia, a preocupação feminina com a aparência não era pequena. Mas vivia sob o controle da Igreja. A mulher, perigosa por sua beleza e sexualidade, inspirava toda a sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o a um instrumento do pecado e das forças diabólicas que ele representava na teologia cristã.
Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não durará, admoestava um pregador resmungão». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT