segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «É de certa forma compreensível que irmã Margarida precisasse de um incentivo para fugir. Ela não era como eu, um pirata, um homem que odiava estar preso e que fugia à primeira oportunidade»

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«(…) Percorrera vários corredores e a mortandade era geral. Apontou para os três corpos: estes morreram aqui. Ainda os tentei ajudar, mas... Ficaram todos em silêncio, como sinal de respeito, e depois o profetista perguntou ao padre para onde deviam ir, mas antes que este dissesse alguma coisa a mulher mais velha falou. Debíamos fugir. O padre apontou para irmã Margarida, exaltado: ela merece a liberdade, mas tu não, pecadora! A mulher mais velha ignorou-o e cruzou a porta, e depois voltou atrás e disse que por ali podiam descer para a rua. O profetista seguiu-a, mas irmã Margarida ficou junto do padre e dos três mortos. Pediu ao sacerdote: padre, preciso de me confessar... Pequei... Com ternura, o padre colocou-lhe a mão direita na cabeça e disse: criança, nada que tenhas feito é grave neste dia terrível... Irmã Margarida precipitou-se, numa ânsia de lhe contar que se tentara enforcar, com medo de morrer queimada; que perdera a vergonha com o carcereiro para conseguir uma corda; e que agora lhe tinha roubado um fio, que por acaso era dela. Mas, sem a ouvir, o padre interrompeu-a: criança, sofreste muito e injustamente. As acusações contra ti são uma farsa... Porque não aproveitas e foges? Nesse momento, irmã Margarida compreendeu pela primeira vez que podia aspirar a ser livre e perguntou: fugir? Como? O padre respirou fundo: não sabes o que aconteceu? Ela não sabia e ele explicou-lhe: Lisboa foi atingida por um terramoto. A cidade está destruída. Se olhares pelas janelas, vais ver... Devias aproveitar. Foge! Foge!, gritou o padre. Mas irmã Margarida estava paralisada pelo que ouvira. Um terramoto... Olhou em volta, perplexa. O padre abanou-a pelos ombros e gritou: olha para mim, rapariga! Irmã Margarida assim fez e ele acrescentou: eu não chamo os soldados. És a única pessoa que não merece morrer amanhã. A irmã Alice é outra história. Afasta-te dela, eles vão andar à procura dela. E do outro também... Mas, tu... Ninguém se vai preocupar contigo, não fizeste nada de mal. Foge, foge, e depressa!
É de certa forma compreensível que irmã Margarida precisasse de um incentivo para fugir. Ela não era como eu, um pirata, um homem que odiava estar preso e que fugia à primeira oportunidade, como aconteceu nessa manhã, e como já sucedera no passado, quando estive preso pelos árabes. Ela era uma jovem que tinha sido presa, torturada, julgada e condenada sem perceber bem porquê. Tinha desejado enforcar-se, e não o conseguira. Naquela situação não sabia o que fazer. Fugir para onde? Eu sabia para onde fugir, mas ela não, não tinha ninguém a quem pudesse recorrer, nem um destino geográfico que pudesse dar sentido à sua fuga. Nem sequer família, pois os pais haviam morrido. Para ela, a liberdade era ainda um território duvidoso e desconhecido. Contudo, pressentiu que aquela oportunidade podia poupá-la à morte na fogueira, e que a absolvição moral do sacerdote, seu confessor, era uma espécie de garantia da existência de um sentido de justiça superior, que lhe dava razão. Portanto, apoiou-se nessas palavras, ganhou forças e fugiu. Começou naquele momento a reinventar-se como pessoa, e ainda bem, pois foi esse primeiro passo que possibilitou o nosso encontro, dias depois. Se hoje a amo, devo-o também àquele confessor da prisão, que extinguiu a relutância do coração de irmã Margarida e lhe apontou um novo caminho.
Despediu-se do padre, e descobriu o local de fuga do profetista e da freira mais velha. Entre duas celas, havia uma escadaria de pedra que as derrocadas tinham colocado à vista. Formara-se uma espécie de cascata de destroços, por onde se podia descer até à rua. A meio, a freira mais velha e o profetista desciam, devagar, para evitar cair. Seguiu-os. Quase caiu por duas vezes, antes de chegar finalmente ao chão. Os outros esperaram por ela, mas o profetista estava muito agitado, com medo de que os soldados os vissem. Na rua, tudo era confusão. Nuvens enormes de poeira pairavam, ouviam-se gritos lancinantes e desmoronamentos constantes de edifícios nas redondezas. Deus me balha..., repetiu irmã Alice. A cerca de cem metros, apresentava-se uma das portas do Convento de São Domingos. E, um pouco antes, nascia uma travessa, que ia dar ao Rossio. Ao longe, irmã Margarida viu aparecerem vultos vestidos de branco. Eram os soldados da Inquisição e avisou os seus companheiros de fuga. Vamo fugi!, gritou o profetista. Desataram a correr, e nas suas costas ouviram alguns tiros. Contornaram um dos cantos do palácio, enfiaram pela estreita ruela, e o Rossio apareceu de repente à frente deles. Foi tal a surpresa com o que lá se passava que pararam, embasbacados». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT