sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Quatro escritores de prosa doutrinal religiosa. AJ Saraiva e Óscar Lopes. «... Quando cansarão meus males e fadigas, minhas enjúrias e ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas n’alma e minhas magoas, as bem-aventuranças longas e tão cansadas?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Consideraremos à parte da prosa de ficção um conjunto de obras que, embora contenham elementos ficcionistas, tais como a alegoria, o diálogo e a descrição de visões, se caracteriza todavia pelo predomínio dos motivos religiosos. Não pode falar-se, na literatura portuguesa, de uma literatura propriamente mística, entendendo-se como tal aquela que exprime, por meios estilísticos tendentes à sugestão emocional, uma experiência imaginada ou experimentada de contacto directo com a divindade. Nada na literatura portuguesa se pode comparar às Moradas de St., Teresa de Ávila ou às obras de S. João da Cruz. Não parecem numerosas as obras que é usual classificar como ascéticas, isto é, as que se ocupam dos preceitos que levam à perfeição espiritual e preparam para o gozo da união com Deus (género que tem a sua melhor expressão na Imitação de Cristo). Deve todavia ressalvar-se que os textos de devoção não têm sido sistematicamente explorados pelos historiadores da literatura. O grande êxito que tiveram as obras de Frei Luís de Granada, autor de língua castelhana, mas que viveu e editou em Portugal, é significativo da existência de um público numeroso para este género de obras. Entre as poucas obras de inspiração religiosa que seguidamente vamos examinar, inclui-se uma de cunho hebraico e publicada em Itália. Embora adoptando a ficção pastoril, a sua inspiração é fundamentalmente bíblica, e o seu tema nada tem que ver com o bucolismo, excepto a descrição idealizada de um lugar ameno campestre.

Samuel Usque
A Consolação às Tribulações de Israel (Ferrara, 1553), do judeu português emigrado em Itália Samuel Usque, é constituída por três diálogos entre pastores (Icabo, Numeu e Zicareu, anagramas de nomes judaicos) e tem como propósito rememorar as perseguições sofridas pelo povo bíblico e recordar-lhe as divinas promessas de resgate. Parece à primeira vista estarmos simplesmente em presença de um livro de forma bucólica e de fundo religioso: tudo são reflexões e queixumes acerca das matanças, das escravizações, vexames, padecimentos sofridos pelos israelitas, em constante paráfrase de textos bíblicos e históricos, ou sobre recordações familiares, mitigando-se o sofrimento com a consolação das profecias e dos mistérios cabalísticos (a transmigração das almas, os poderes ocultos). No entanto, o pastoralismo de Usque vai talvez mais fundo do que o dos outros bucólicos portugueses, dado que a Bíblia, em que as suas alegorias se apoiam constantemente, elabora a história e as crenças de um novo nómada, ao passo que o bucolismo de Teócrito e Virgílio é muito mais evoluído em relação às raízes do género. A imaginação literária, o estilo de Usque constituem talvez por isso um caso único na nossa literatura quinhentista, se descartarmos um certo parentesco com a obra em prosa de Bernardim.
Depara-se-nos em Samuel Usque o estilo bíblico, em que o liame lógico é indirectamente dado por alegorias e metáforas simples (ao nível suposto de uma cultura de pastores), com repetições insistentes, com descrições pitorescas de circunstâncias que, logicamente, nada fazem ao caso, mas inculcam uma representação imaginosa das ideias. Este processo é sobretudo sensível no 1.° diálogo, Diálogo pastoril sobre as cousas da Sagrada Escritura, o mais abundante em descritivo campestre, traçando um quadro paradisíaco anterior às atribulações israelitas. Icabo (anagrama de Jacob), que no simbolismo bíblico se confunde corporeamente com o próprio povo judaico (também representado, aliás, pelas suas ovelhas), não entra na matéria histórica dos seus lamentos sem primeiro nos dar todo o lento desenrolar de um dia de pascigo, parece que hora a hora, rês a rês, numa contemplação logicamente preguiçosa que mal suporta substantivo sem adjectivação pitoresca, verbo sem adverbiação esmiuçadora, em longos períodos enumerativos que, ainda assim, não dispensam um espraiamento parentético de longe a longe. Sannazzaro não deixou de concorrer para este pastoralismo, pois certas paráfrases suas já foram reconhecidas pelos eruditos. Mas, mais do que a écloga, domina a inspiração do autor o versículo imaginoso e ritmado dos cânticos das Escrituras, o que ainda mais se evidencia se desse trecho descritivo passarmos às lamentações. Aí parece até que a exigência de melopeia, o tom agridoce dos lamentos e interrogações, ritmo de balanceamento ou intensificação gradativa preexistem à própria significação das frases e a comandam:

... Quando cansarão meus males e fadigas, minhas enjúrias e ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas n’alma e minhas magoas, as bem-aventuranças longas e tão cansadas? E quando terá paz tanta guerra contra o fraco sujeito, temor, suspeita, receios de minhas entranhas? Té quando gemerei, suspirarei, matarei a sede coas lágrimas de meus olhos?

In António José Saraiva e Óscar Lopes, Quatro escritores de prosa doutrinal religiosa, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI, nº 25, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCG/HALP/JDACT