sábado, 10 de agosto de 2019

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «As mãos tremiam-lhe. Depois dos encontros com Lanfranco, e se bem que já tivessem passado quase vinte anos e o seu rosto de rapariguinha assumisse agora as feições da mulher madura…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Milão. 1243
«(…) Ele, por seu lado, deveria, pelo contrário, continuar a manter respeitosas relações de colaboração com os inquisidores, para não incorrer na ira do arcebispo, de cuja benévola protecção até San Simpliciano teria tido necessidade. Um vento imprevisto, soprando entre as arcadas que conduziam ao Broletto, trouxe ao nariz de Matthew um cheiro intenso: provinha da Porta Oriental, onde estava em plena actividade o mercado do peixe. Sorrindo para consigo com a ideia de que aquele fedor chegava, de vez em quando, até às próprias sagradas naves da vizinha Basílica Maggiore, o frade prosseguiu para a sua meta. Saído do Broletto, encaminhou-se por entre as ruelas que iriam conduzi-lo ao Mosteiro de Santa Maria al Lentasio.
Bella vestiu-se à pressa. O cheiro adocicado do homem que há pouco estivera com ela na cama ainda impregnava o ar: nem a estreita porta que se abria ao fundo do quarto e que dava para o quintal que ficava nas traseiras conseguia suavizar o calor sufocante daquele primeiro aceno do Verão. Depois de ter ajeitado a cama, a rapariga sentou-se no banco e virou, sobre a mesa, o pequeno porta-moedas. Limpando a testa suada, contou o dinheiro, atentamente, empilhando as moedas umas sobre as outras; quando se certificou de ter calculado com precisão o que ganhara naquele dia, arrumou as moedas num saquinho de couro, apertando com força os cordões que o fechavam. Depois, lançando um olhar furtivo para a porta, para se assegurar de que ninguém a via, escondeu-o numa fenda da parede, bem tapada pela cabeceira da armação de madeira onde se apoiava o enxergão.
As mãos tremiam-lhe. Depois dos encontros com Lanfranco, e se bem que já tivessem passado quase vinte anos e o seu rosto de rapariguinha assumisse agora as feições da mulher madura, marcada, ainda por cima, pelo sofrimento, o medo de que ele a reconhecesse assaltava-a sempre. Aquela profissão, que exercia por necessidade, havia-lhe transformado a alma, além do corpo. Bella sabia ter-se tornado, mesmo fisicamente, uma outra pessoa: e, no entanto, de todas as vezes, os olhos duros daquele homem observavam-na, estudavam-na como que à procura da resposta para uma dúvida que tivesse podido provocar uma suspeita ou, Santo Deus, uma certeza. Sempre se perguntara por que tortuosa razão do destino Lanfranco a teria eleito, logo a ela, entre tantas prostitutas da cidade, para a habitual suavização dos seus vigorosos apetites que, apesar da sua idade já não muito jovem, ainda nutria. Mesmo que as suas visitas não se sujeitassem a uma cadência fixa, já tinham passado mais de quatro anos desde a primeira vez que, tendo-a encontrado nas proximidades do Broletto à espera de clientes, o homem a abordara. Fixando-a com curiosidade crescente, perguntara-lhe o nome. Bella, respondera-lhe. Bela e mais?, insistira ele num tom inquisitório.
Bella e basta, senhor, replicara com dureza, enquanto os seus olhos desafiavam os do seu interlocutor. Ele não lhe perguntara mais nada e acompanhara-a até à sua casinha, entalada, entre muitas outras, ali mesmo a seguir às muralhas, passada a Porta Romana. De repente, não o reconhecera. Também o seu rosto mostrava as marcas dos anos: as faces estavam mais cheias, o que lhe conferia uma expressão tranquila, desmentida, todavia, pelos frequentes lampejos de crueldade no olhar. Fora exactamente um desses olhares, lançados no acto do pagamento de uma das suas prestações, que lhe fizera finalmente compreender o que lhe recordava aquele homem. E com as lembranças viera também o medo, transformado em terror quando, por ocasião de um dos encontros, acabara por dizer o nome da sua família. Desde então vivera com uma inquietação crescente, com uma angústia constante de que, mais tarde ou mais cedo, também ele se iria lembrar: todavia, não fora possível evitar a companhia, que, pelo contrário, se tinha convertido num opressivo hábito. Lanfranco Calgario fora o assassino de Caterina, a sua patroa. Dezassete anos antes, Bella não passava de uma novíssima criada da casa Gisalbertini, em Calepio. Quando, dois anos depois da morte da mãe, Caterina se encantara pelo jovem e interessante sobrinho-neto do arcebispo de Milão, que era frequentador assíduo do palácio da família, ela já servia como sua criada particular. Tinha seguido com apreensão o desenrolar daquela história, temendo possíveis futuras consequências, que, de facto, se tinham verificado. O pai de Caterina, prostrado com o desaparecimento da mulher, adoecera e, ao cabo de seis meses, morrera. A jovem encontrava-se sozinha: o irmão Gerardo partira um ano antes para Lomellina, no séquito de uma expedição contra os habitantes de Pavia e nunca mais voltara». In Valeria Montaldi, O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de CdasLetras/Editorial Notícias/JDACT