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«O estatuto de um homem podia ser
medido pelo número de plantas decorativas que tinha nos seus canteiros, 10 000 se
fosse um fidalgo rural, 20 000 se fosse um baronete, 30 000 se fosse um conde e
50 000 se fosse um duque; mas se fosse um Goldbaum, teria 60 000. Frase popular
muito citada. 1911»
Viena.
Abril
«O
palácio dos Goldbaum era feito de pedra, não de ouro. As crianças que caminhavam
pela Heugasse, com os seus casacos elegantemente apertados e de mão dada com a ama
ou a Mutti, ficavam sempre desiludidas. Tinham-lhes prometido um palácio
pertencente ao príncipe dos judeus, feito de ouro e marfim e supostamente
cravejado de jóias e, em vez disso, ali estava uma casa enorme feita de pedra branca
vulgar. Embora fosse da melhor pedra calcária de toda a Áustria, transportada dos
Alpes até Viena numa linha ferroviária construída graças a um empréstimo do
Banco Goldbaum, num comboio que era propriedade da Companhia Ferroviária
Goldbaum, com as cores da família, azul e dourado, resplandecentemente pintadas,
e adornado com o brasão da família: cinco pintassilgos a pousar num ramo de sicómoro.
(Os mais espirituosos gostavam de descrever o brasão como os pássaros na árvore
do dinheiro) No interior, o salão estava revestido de talha dourada desde o lambril
até ao ponto mais alto da abóbada do tecto; assim, mesmo nos dias mais escuros,
a luz que reflectia transbordava de sol. O poder e a riqueza dos Goldbaum era tal,
dizia-se, que mesmo nos dias cinzentos eles contratavam o sol só para si.
De noite, luz eléctrica brilhava de
todas as janelas e a casa reluzia como um transatlântico a atravessar as ruas
de Viena. Por vezes, nas festas mais elegantes, centenas de pintassilgos eram soltos
no sa1ão, esvoaçando com um trinar por cima dos convidados. (Os pássaros eram acompanhados
de um contingente extraordinário de duas dezenas de criadas cuja única tarefa, nessa
noite, era limpar os salpicos de excrementos de pássaro assim que tocavam no chão
de mármore; até o poder dos Goldbaum, aparentemente, tinha limites) Ainda assim,
quase nada acontecia na capital, e para além dela, sem o seu consentimento, e menos
ainda sem o seu conhecimento. O próprio imperador desprezava e suportava os
Goldbaum como quem suporta o mau tempo. Não havia nada a fazer. Eles controlavam
a dívida do imperador.
O palácio da Heugasse era apenas a
expressão da sua influência. A verdadeira origem da sua fortuna era um edifício
pequeno e discreto na Ringstrasse. Por trás da porta negra ficava a Casa do Ouro:
o ramo austríaco do banco da família. Os homens Goldbaum eram banqueiros, e as mulheres
Goldbaum casavam com homens Goldbaum e produziam crianças Goldbaum. Contudo, a família
não se considerava apenas uma dinastia de banqueiros, mas também uma família de
coleccionadores.
Os Goldbaum gostavam de coleccionar
coisas belas: elegante mobiliário Luís XIV quadros de Rembrandt, da Vinci e Vermeer,
e ainda os grandes solares, châteaux e castelos para os guardar. Coleccionavam jóias,
ovos Fabergé, automóveis, cavalos de corrida, e as obrigações financeiras de primeiros-ministros.
Greta Goldbaum seguia esta tradição familiar. Ela coleccionava sarilhos. Era a característica
que Otto Goldbaum mais apreciava na irmã. Antes de Greta nascer, a mãe tinha visitado
um dos quartos do filho, sentara se inquieta numa cadeira destinada
especialmente a explicar, com a ajuda da ama favorita de Otto, que dentro de
algumas semanas ele teria um novo irmãozinho ou uma nova irmãzinha. Beberam
chocolate quente de um serviço de chá em miniatura, de porcelana e adornado com
o brasão de família em ouro de 24 quilates, e comeram pequenas fatias de Sachertorte
com cobertura azul e rosa, encomendada especialmente do grande hotel.
Otto escutou em silêncio,
observando com bastante suspeita a enorme barriga da baronesa a subir e a
descer com a sua respiração. E contudo, quando Greta apareceu num dos quartos das
crianças, quatro semanas mais tarde, acompanhada do seu próprio contingente de amas
de bata engomada, não se sentiu nada incomodado. Pela primeira vez nos seus três
anos de vida, Otto tinha um aliado. Não havia dúvida de que Greta parecia pertencer-lhe
mais a ele do que aos pais, que viviam no andar de baixo. A baronesa era considerada
uma mãe extremosa por ir visitar o novo bebé quase todos os dias e por Otto ser
convocado para almoçar com o barão e a baronesa pelo menos duas vezes por semana.
Ouvia a irmã a chorar e a balbuciar através da parede e, quando as enfermeiras dormiam,
entrava discretamente no quarto dela e deitava-se no chão. Fazia-o tantas vezes
que as enfermeiras finalmente desistiram de lhe ralhar ou de o levar ao colo para
a sua cama e acabaram por instalar uma caminha para Otto ao lado do berço da bebé». In Natasha
Solomons, Linhagem de Ouro, 2018, Bertrand Editora, 2019, ISBN
978-972-253-717-9.
Cortesia de BertrandE/JDACT