domingo, 11 de agosto de 2019

As Areias do Tempo. Sidney Sheldon. «Está perdendo o seu tempo aqui, padre. Estes animais não têm almas para serem salvas. Ainda assim, meu filho, devemos tentar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Primeiro vinha o som. Começava como um ténue e distante sussurro no vento, quase imperceptível, depois ficava cada vez mais alto, até se transformar numa explosão de cascos batendo, e subitamente seis bois e seis touros apareciam. Cada um pesando cerca de setecentos quilos, avançavam pela Calle Santo Domingo como expressos mortíferos. Por dentro das barricadas de madeira instaladas em cada esquina, para manter os touros confinados a uma única rua, havia centenas de jovens ansiosos e nervosos, decididos a provar sua bravura enfrentando os animais enfurecidos. Os touros corriam da extremidade da rua, passavam pela Calle Laestrafeta e a Calle de Javier, passavam por farmácias e lojas de roupas, pelo mercado de frutas, a caminho da Plaza de Hemingway, e soavam gritos de olé da multidão frenética. Com a chegada dos animais, começavam uma debandada desesperada para escapar aos chifres afiados e cascos letais. A repentina realidade da morte se aproximando fazia com que alguns participantes corressem para a segurança dos vãos de portas e saídas de incêndio. Eram acompanhados por escárnios de cobardon. Os poucos que tropeçavam e caíam no caminho dos touros eram logo puxados para um lugar seguro.
Um menino e o avô escondiam-se atrás de uma barricada, ofegantes com a emoção do espectáculo que ocorria tão perto dali. Olhe só para eles!, exclamou o velho. Magnífico! O menino estremeceu. Tenho medo, avô. O velho passou o braço pelos seus ombros. Sim, Manuelo. É assustador, mas também maravilhoso. Já corri com os touros uma vez. Não há nada igual. V. testa a si mesmo contra a morte, e isso faz com que se sinta um homem. Em geral, levava dois minutos para os animais galoparem pelos novecentos metros da Calle Santo Domingo até à arena; no momento em que os touros entravam no curral, um terceiro rojão devia surgir no céu. Naquele dia o terceiro rojão não explodiu, pois ocorreu um incidente que nunca antes acontecera nos quatrocentos anos de história de touros de Pamplona. Enquanto os animais avançavam pela rua estreita, meia dúzia de homens, vestidos nos trajes pitorescos da feria, mudaram as posições das barricadas. Os touros foram obrigados a deixar a rua exclusiva e ficaram à solta no coração da cidade. O que, um momento antes, fora uma comemoração feliz se transformou no mesmo instante num pesadelo. Os animais frenéticos atacaram os espectadores atordoados. O menino e o avó foram dos primeiros a morrer, derrubados e pisoteados pelos touros. Violentas chicotadas atingiram um carrinho de bebê e mataram a criança indefesa, derrubando a mãe com a cara esmagada. A morte pairava no ar por toda a parte. Os animais colidiam com espectadores desprotegidos, derrubando mulheres e crianças, enfiando os chifres compridos e fatais nas pessoas, barracas de comida e estátuas, arrasando tudo o que tinha o azar de se encontrar pela frente. Todos gritavam desesperados, na tentativa de escapar do caminho dos animais enfurecidos.
Um furgão vermelho brilhante apareceu à frente dos touros, que se viraram para atacá-lo, seguindo pela Calle de Estrella, a rua que levava ao cárcel, a prisão de Pamplona. O cárcel é um prédio de pedra, de dois andares, janelas gradeadas, aparência assustadora. Há guaritas nos quatro cantos, e a bandeira espanhola, vermelha e amarela, trémula por cima da porta. Um portão se abre para um pequeno pátio. O segundo andar do prédio consiste de celas, em que estão os presos condenados à morte. No interior da prisão, um corpulento guarda, com um uniforme da Polícia Armada, conduzia um sacerdote de hábito preto pelo corredor do segundo andar. O guarda carregava uma metralhadora. Ao perceber a expressão inquisitiva nos olhos do sacerdote à visão de arma, o guarda explicou: o cuidado nunca é demais aqui, padre. Temos a escória da terra neste andar. O guarda pediu ao padre que passasse por um detector de metal, muito parecido com os usados nos aeroportos. Desculpe, padre, mas os regulamentos... Não tem problema, meu filho. No momento em que o padre passou, uma sirene estridente irrompeu no corredor. Instintivamente, o guarda contraiu a mão que empunhava a metralhadora. O padre virou-se e sorriu para o guarda, murmurando: a culpa é minha. Removeu uma pesada cruz de metal que pendia do pescoço numa corrente de prata e entregou-a ao guarda. Quando tornou a passar, o detector permaneceu em silêncio. O guarda devolveu a cruz e os dois continuaram a jornada pelas profundezas da prisão. O mau cheiro no corredor, perto das celas, era opressivo. O guarda estava com um ânimo filosófico.
Está perdendo o seu tempo aqui, padre. Estes animais não têm almas para serem salvas. Ainda assim, meu filho, devemos tentar. O guarda sacudiu a cabeça. Posso garantir-lhe que os portões do inferno estão à espera para escolher os dois. O padre olhou surpreso para o guarda. Dois? Fui informado que havia três que precisavam de confissão. O guarda encolheu os ombros. Poupamos um pouco do seu tempo. Zamora morreu na enfermaria essa manhã. Ingrato. Eles alcançaram as celas mais distantes. Chegámos, padre. O guarda destrancou a porta de uma cela, depois recuou, cauteloso, enquanto o padre entrava. Tornou a trancar a cela e ficou parado no corredor, alerta a qualquer sinal de problema. O padre aproximou-se do vulto no imundo catre da prisão. Seu nome, meu filho? Ricardo Mellado». In Sidney Sheldon, As Areias do Tempo, 1989, Publicações Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.

Cortesia PEuropaAmérica/JDACT