sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Mais uma vez, alguém decidiu por mim. Um som celestial invadiu as sombras do jardim como um perfume. Ouvi os contornos daquele sussurro desenharem uma ária acompanhada ao piano»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A sua fachada sombria erguia-se por trás de uma fonte com esculturas que o tempo tinha vestido de musgo. Começava a escurecer e o local me pareceu um pouco sinistro: rodeado por um silêncio mortal, só a brisa se atrevia a sussurrar uma advertência sem palavras. Compreendi que tinha penetrado numa das zonas mortas do bairro e pensei que o melhor a fazer era voltar atrás e retornar ao internato. Estava debatendo-me entre o bom senso e a fascinação mórbida por aquele lugar esquecido, quando descobri dois brilhantes olhos amarelos acesos no meio da escuridão, cravados em mim como punhais. Engoli em seco. A pelagem cinzenta e aveludada de um gato se recortava imóvel diante das grades do portão da mansão. Um pequeno pardal agonizava entre seus dentes pontiagudos. Um guizo prateado pendia do pescoço do felino. Seu olhar estudou-me por alguns segundos. Pouco depois, deu meia-volta e deslizou por entre as barras de ferro. Fiquei olhando enquanto ele se perdia na imensidão daquele éden maldito, levando o pardal na sua última viagem.
A visão daquela pequena fera altiva e desafiadora cativou-me. A julgar por seu pelo lustroso e pelo guizo no pescoço, deduzi que tinha dono. Talvez aquela casa hospedasse algo mais que os fantasmas de uma Barcelona desaparecida. Cheguei mais perto e apoiei as mãos nas grades da entrada. O metal estava frio. As últimas luzes do crepúsculo iluminavam o rasto que as gotas do sangue do pardal tinham deixado através daquela selva.
Pérolas escarlates desenhavam a trilha do labirinto. Engoli de novo, ou melhor, tentei engolir. A minha boca estava seca. Como se soubesse de alguma coisa que eu ignorava, o sangue latejava nas minhas têmporas. Foi nesse instante que senti a porta ceder sob meu peso, e compreendi que estava aberta. Quando dei o primeiro passo para o interior, a lua iluminava o rosto pálido dos anjos de pedra da fonte. Eles me observavam. Meus pés pareciam pregados no chão. Temia que a qualquer momento aqueles seres pulassem dos seus pedestais e se transformassem em demónios armados de garras de lobo e línguas de serpente. Mas nada disso ocorreu. Respirei profundamente, considerando a possibilidade de desligar a minha imaginação ou, melhor ainda, abandonar a minha tímida exploração daquela propriedade.
Mais uma vez, alguém decidiu por mim. Um som celestial invadiu as sombras do jardim como um perfume. Ouvi os contornos daquele sussurro desenharem uma ária acompanhada ao piano. Era a voz mais bonita que eu já tinha ouvido na vida. A melodia me parecia familiar, mas não consegui identificá-la. A música vinha da casa. Segui o seu rasto hipnótico. Lâminas de luz vaporosa se filtravam pela porta entreaberta de uma galeria envidraçada. Reconheci os olhos do gato, fixados em mim do parapeito de um janelão do primeiro andar. Fui-me aproximando da galeria iluminada de onde saía aquele som indescritível. Era a voz de uma mulher. O brilho ténue de cem velas bruxuleava no interior. A luz revelava a cometa dourada de um velho gramofone, no qual girava um disco. Sem pensar no que estava fazendo, fui invadindo a galeria, fascinado por aquela sereia aprisionada no gramofone. Na mesa onde a engenhoca repousava entrevi um objecto brilhante e esférico. Era um relógio de bolso. Peguei-o e fui examiná-lo à luz das velas. Os ponteiros estavam parados e a tampa, rachada. Parecia de ouro e tão velho quanto a casa em que se encontrava. Um pouco mais adiante havia uma grande poltrona de costas para mim, diante de uma lareira sobre a qual pude apreciar o retrato a óleo de uma mulher vestida de branco». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT