quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «O edifício tinha quatro andares, sem contar os dois porões e o sótão com o claustro, onde viviam os poucos sacerdotes que ainda trabalhavam como professores»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No final da década de 1970, Barcelona era uma miragem de avenidas e becos, onde, só de cruzar a soleira de uma portaria ou de um café, uma pessoa poderia viajar para trinta ou quarenta anos antes. O tempo e a memória, a história e a ficção se fundiam como aquarelas na chuva naquela cidade feiticeira. Foi ali, sob o eco de ruas que já não existem, que catedrais e edifícios fugidos de alguma fábula tramaram o cenário desta história.
Na época, eu era um menino de 15 anos que mofava entre as paredes de um internato com nome de santo, nas margens da estrada de Vallvidrera. Naquele tempo, o bairro de Sarriá ainda conservava o aspecto de um pequeno povoado encalhado à margem de uma metrópole modernista. Meu colégio se erguia no alto de uma rua que subia do Paseo de La Bonanova. Sua fachada monumental sugeria mais um castelo do que uma escola. E sua silhueta angulosa de cor barrenta era um quebra cabeça de torres, arcos e alas em trevas. O colégio era cercado por uma cidadela de jardins, fontes, tanques lodosos, pátios e pinheirais encantados. Ao seu redor, edifícios sombrios hospedavam piscinas cobertas por um véu fantasmagórico de vapor, ginásios enfeitiçados de silêncio e capelas tenebrosas onde as imagens dos santos sorriam sob o reflexo dos círios.
O edifício tinha quatro andares, sem contar os dois porões e o sótão com o claustro, onde viviam os poucos sacerdotes que ainda trabalhavam como professores. Os quartos dos internos se enfileiravam ao longo dos corredores cavernosos do quarto andar. Essas intermináveis galerias jaziam em perpétua penumbra, envoltas por um eco espectral. Eu passava meus dias sonhando acordado nas salas de aula daquele imenso castelo, esperando pelo milagre que se produzia todo dia às cinco e vinte da tarde. Nessa hora mágica, o sol vestia os altos janelões de ouro líquido. A campainha tocava anunciando o fim das aulas e nós, os internos, dispúnhamos de quase três horas livres antes do jantar no refeitório. A ideia era de que esse tempo deveria ser dedicado aos estudos e à reflexão espiritual. Não me lembro de ter destinado um único dia dos muitos que passei ali a nenhuma dessas nobres tarefas. Aquele era o meu momento favorito. Driblando o controle da portaria, partia para explorar a cidade. Costumava voltar para o internato, ainda a tempo de jantar, caminhando entre velhas ruas e avenidas enquanto anoitecia ao meu redor. Naqueles longos passeios, experimentava uma sensação de liberdade embriagante. A minha imaginação voava por cima dos edifícios e se erguia até ao céu. Por algumas horas, as ruas de Barcelona, o internato e o meu triste dormitório no quarto andar sumiam. Por algumas horas, só com um par de moedas no bolso, eu era o sujeito mais sortudo do universo.
Muitas vezes, o meu caminho me levava para aquela área que na época era chamada de deserto de Sarriá e que não era nada mais que um arremedo de bosque perdido numa terra de ninguém. A maioria das antigas mansões senhoriais, que nos bons tempos povoavam o norte do Paseo de la Bonanova, ainda estava de pé, embora em ruínas. As ruas que cercavam o internato traçavam uma cidade fantasma. Muros cobertos de hera vedavam a entrada em jardins selvagens nos quais se erguiam residências monumentais, palácios invadidos pelo mato e pelo abandono, nos quais a memória parecia flutuar como uma névoa que demora a se dissipar. Muitos desses casarões só esperavam a demolição e outros tinham sido saqueados por anos a fio. Alguns, no entanto, ainda estavam habitados. Os seus ocupantes eram membros esquecidos de famílias arruinadas. Uma gente cujo nome se escrevia em quatro colunas no La Vanguardia, na época em que os bondes ainda despertavam o temor reservado a invenções modernas. Reféns de um passado moribundo, negavam-se a abandonar o barco à deriva. Temiam que os seus corpos se desfizessem em cinzas ao vento se ousassem pôr os pés fora das suas mansões devastadas.
Prisioneiros, definhavam à luz dos candelabros. Muitas vezes, quando passava apressado diante das grades enferrujadas de um daqueles portões, eu tinha a impressão de que olhares assustados me acompanhavam por detrás das janelas descascadas. Uma tarde, no fim de Setembro de 1979, resolvi aventurar-me ao acaso por uma daquelas avenidas semeadas de palacetes modernistas que não tinha reparado antes. A rua descrevia uma curva que terminava num portão de ferro igual a tantos outros. Do outro lado da grade, estendiam-se os restos de um velho jardim marcado por décadas de abandono. Entre a vegetação, entrevia-se a silhueta de um casarão de dois andares». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT