sábado, 17 de agosto de 2019

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Vá, Arménio… Cuidado com a língua! Não viste que até os elementos lhe obedecem… Do que estás a falar é de outra coisa, meu caro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Enquanto Flaviano e Arménio esperavam à entrada do templo, maldizendo as condições climatéricas e garantindo a segurança das mulheres que trouxeram até Iria Flavia, Priscila dobrou o umbral da porta, com muito custo, devido ao cansaço da viagem e à indisfarçável debilidade. Mas isso não a impedia de prosseguir de cabeça erguida e pose seráfica, a par do sacerdote, que a protegia da chuva, e já inteirado da razão da imprevista visita. Valéria seguia atrás, transportando o que precisava para o culto. O resto seria ali comprado, pois que também era necessário contribuir para o sustento do sacerdote e do próprio santuário, que os tempos iam difíceis. Chegada ao altar, depois de um prolongado momento de reflexão, Priscila ergueu os braços aos céus e, de pé, murmurou a ladainha que lhe saiu do coração:

Ó Senhora, tu que vês e atendes a quem te invoca com toda a boa-fé,
A fé dos nossos antepassados e dos vindouros,
Dos que no teu colo encontraram a cura para todos os males,
Consolo para todas as tristezas,
E que assim será para todo o sempre!
Acode-me e protege-me nesta hora!

Ó deusa da simplicidade, ó protectora dos mortos,
Ó deusa das crianças de quem todos os começos surgiram,
Ó Senhora dos eventos mágicos e da natureza!
Tu que deste origem ao Céu e à Terra,
Que conheces o órfão e a viúva,
Que providencias justiça aos pobres
E que dás abrigo aos frágeis!
Rainha dos Céus,
Acode-me e protege-me nesta hora!

Mãe dos deuses,
Que resplandeces em mil caras,
Em quem habitam todos os nomes,
Esposa que choras a morte do teu próprio esposo,
Senhora das culturas verdejantes,
Senhora da Casa que dá a Vida,
Doadora da Luz do Céu,
Em ti confio a vida e a saúde daquele que gerei!

Em pungente silêncio, acendeu uma lâmpada de azeite e colocou-a delicadamente sobre o altar, derramando uma pitada de incenso junto a uma vela que se consumia em chamas de eternidade. Deitou uma moeda no poço que se abria sobre o lado esquerdo e voltou ao silêncio das orações. O sacerdote, retirado para um compartimento do santuário, atrás do altar, aproximou-se de Priscila e murmurou-lhe ao ouvido: está tudo pronto! As duas mulheres seguiram o homem de túnica verde, muito coçada pelo uso, para a dependência de onde saíra. Nos quatro recantos, ardiam velas e queimavam-se as essências orientais apropriadas ao culto. Ali se consumaria a oblação final, a que ninguém mais poderia assistir.
Valéria tirou do saco um robusto galo negro nascido e engordado na villa, com o bico bem amarrado por fios de fiteira. O sacerdote cortou-os, com delicadeza. O bicho cacarejou, aliviado. Mas foi por tempo curto, pois, num único golpe, uma lâmina sacrificial atravessou-lhe o pescoço, dando apenas tempo a alguns rápidos espasmos do corpo sem cabeça que o comandasse. O sangue encheu de vermelho o bacio preparado para a imolação. Talvez o súbito desaparecimento das mulheres tivesse inquietado os homens que as protegiam, pois Valéria entreviu os olhos dos acompanhantes a surgirem e logo desaparecerem na porta da entrada do compartimento. E quando os dois homens regressaram à luz do dia certamente ter-se-ão espantado com o milagre que acabara de suceder: a chuva parara, depois de dias a fio de tormenta. O vento que soprava do tenebroso mar, fronteira da terra que ali acabava, desvaneceu-se como que por encanto divino. Parece que a velha deusa continua poderosa! Cala-te, Flaviano! São superstições, idolatria, que tanto mal fazem a Deus…
Vá, Arménio… Cuidado com a língua! Não viste que até os elementos lhe obedecem… Do que estás a falar é de outra coisa, meu caro… De outra coisa?! Arménio virou a face para o sul, para onde as nuvens negras corriam para tão cedo não voltarem. Apenas faziam verter dentro de si bátegas de raiva. Foi magia… A poderosa magia negra fez o que acabaste de assistir! Flaviano olhou para todos os lados e encostou o indicador em riste ao nariz, antes de pronunciar as últimas palavras, pois os três vultos saíam, aliviados e sorridentes, do templo de pedra. Cala-te com essa conversa! Senão, serei eu a tomar as medidas…» In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT