sábado, 10 de agosto de 2019

O Manuscrito do Imperador. Valeria Montaldi. «De repente, um coro raivoso de rugidos encheu o ar. O armeiro voltou-se. Alguém havia ateado fogo à palha que recobria o terreno do cercado de animais…»

Cortesia de wikipedia e jdact

… destas cidades restará o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht

Parma. 1248
«(…) Levantou-se e prosseguiu com mais cuidado, observando atentamente aquela fartura de equipamentos de guerra. As espadas do exército imperial, forjadas na Alemanha, eram famosas como as mais resistentes da Europa, e uma daquelas armas lhe seria vantajosa: se a revendesse na sua oficina, poderia obter um lucro notável. Avançou mais. Estendido numa saliência do terreno jazia o cadáver decapitado de um homem. O elmo, do qual se projetavam ossos e cartilagens sanguinolentas, havia rolado até um pouco adiante. O armeiro se aproximou e, com gestos experientes, desatou as tiras de couro do fecho. O elmo se abriu e a cabeça cortada deslizou para fora, caindo no chão com um baque surdo. Sem dar importância a isso, o armeiro avaliou a consistência do capacete, girou-o entre as mãos e examinou-o por todos os lados. Era de feitura caprichada e apresentava apenas uma pequena mossa: à excepção de uma longa estria de sangue que lhe percorria a base, toda a superfície do metal brilhava como prata polida. Segurando-o em baixo do braço dobrado, voltou para perto do cadáver. Do cinto que apertava a cota de malhas de ferro pendia a bainha vazia, e a mão do morto ainda segurava a espada. O armeiro a extraiu à força daqueles dedos enrijecidos e levantou-a: era pesada, e a lâmina, coberta de sangue seco, terminava em ponta arredondada. Observando-a melhor, ele notou que, em relevo sobre a empunhadura, corria um friso com motivos de folhas, em cujo interior estava gravado hoffnung: embora não fizesse ideia sobre o que podia significar aquela palavra, bem sabia que muitas vezes os cavaleiros a serviço do imperador mandavam gravar nas suas armas as insígnias da própria linhagem. Se o corpo daquele combatente tivesse pertencido a um aristocrata, como ele supunha, em algum lugar devia se encontrar também um escudo igualmente precioso.
Apertando ao peito o elmo e a espada, o armeiro voltou-se e recuou alguns passos: ali, a poucos pés de distância, abandonado sobre o terreno ensanguentado e semicoberto pelas placas de ferro da armadura de outro soldado abatido, encontrou-o. Inclinou-se para examiná-lo: uma cruz de bronze trabalhada em repuxado ocupava toda a parte central, enquanto nas bordas estava cinzelada a ouro a mesma palavra que ornava o punho da espada recém-roubada. Já certo de ter encontrado o seu butim, meteu a mão livre sob o escudo, agarrou as correias e, usando a espada como alavanca, começou a puxá-lo para si. A armadura que revestia o morto era pesada e o armeiro, embora tivesse músculos robustecidos por anos de trabalho, só conseguiu extrair o clípeo na quinta tentativa. Levantou-o e, pendurando-o às costas, caminhou rumo à saída do acampamento. Estava satisfeito. A venda daquelas três peças, depois de limpas e devidamente polidas, iria proporcionar-lhe uma bela soma, a qual, acrescida ao prémio prometido por quem o encarregara do furto, poderia garantir-lhe um pequeno capital, justamente aquele de que necessitava para retomar sua actividade, que aqueles longos meses de assédio haviam arruinado.
Tinha quase chegado à porta sul do acampamento quando a sua atenção foi atraída por uma aglomeração de pessoas, da qual provinham gritos e gargalhadas espalhafatosas. Aproximou-se.
No centro do grupo que o circundava, um homem estava encolhido sobre um rudimentar assento de palha. As mangas de tecido azul do seu manto estavam arregaçadas até aos ombros e revelavam um precioso forro de peliça. Os braços nus, abandonados ao longo dos flancos, pendiam inertes sobre o terreno e gotejavam sangue. As mãos, amputadas à altura dos pulsos, jaziam aos seus pés. O rosto do homem estava cinzento e os olhos aterrorizados corriam de um a outro dos seus algozes: a mandíbula, despencada como a de um cadáver, escancarava-lhe a boca numa careta obtusa. E agora, Taddeo? Sem mãos, como fará para escrever ainda os documentos do seu patrão? As palavras zombeteiras saídas da boca do popular que as pronunciara foram seguidas por outras risadas e por uma chuva de cusparadas. O prisioneiro se prostrou e desmaiou. Oh, gente, será que já morreu, hem?!, perguntou, preocupada, uma voz feminina. Claro que não, não vê que está respirando?, respondeu alguém ao lado dela. Mas é melhor que o levemos logo para a cidade: todos devem vê-lo, antes que estique as canelas!
Depois de embrulhá-lo no próprio manto, colocaram-no sobre uma carroça: uma mulher recolheu do solo as mãos amputadas e jogou-as sobre o corpo. Depois, enquanto o homem mais robusto do grupo empurrava o veículo, todos juntos se encaminharam para a saída do campo. O armeiro os seguiu. Um esgar satisfeito lhe estirava os lábios. Quando, na véspera, haviam tomado a decisão de tentar o assalto ao acampamento que Frederico chamara pomposamente de Vitória, ninguém em Parma poderia esperar tão grande sucesso: dezenas de soldados mortos, grande número de prisioneiros e até a captura de Taddeo Sessa, um dos mais influentes conselheiros do imperador. E para ele, além disso, aquele butim inesperado, que finalmente o enriqueceria... De repente, um coro raivoso de rugidos encheu o ar. O armeiro voltou-se. Alguém havia ateado fogo à palha que recobria o terreno do cercado de animais e as chamas começavam a subir, tão altas que podiam ser vistas até de longe. Considerando que nem mesmo aquelas feras inúteis se salvariam, ele apressou o passo rumo ao fosso que separava a área do campo e os muros da cidade». In Valeria Montaldi, O Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial Record, 2011, ISBN 978-850-108-703-4.

Cortesia de GERecord/JDACT