sábado, 31 de agosto de 2019

Marina no 31. Carlos Ruiz Zafón. «Naquela mesma tarde, quando as aulas terminaram, JF e eu escapulimos pela porta da cozinha e pegamos a misteriosa rua que levava ao palacete. O pavimento de pedras estava cheio de poças e montes de folhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Deu uma olhada na fotocópia e lançou-me um olhar enviesado. Procure na letra i de idiota e vai ver que não sou o único famoso por aqui, replicou JF. Naquele dia, ao meio-dia, na hora do pátio, JF e eu penetrámos sorrateiramente no tenebroso auditório. Os nossos passos no corredor central despertavam o eco de cem sombras caminhando nas pontas dos pés. Dois raios de luz prateada caíam sobre o palco empoeirado. Fomos nos sentar naquele clarão de luz, diante das fileiras de cadeiras vazias que se fundiam na penumbra. O sussurro da chuva arranhava as vidraças do primeiro andar. Bem, atacou JF, para que todo esse mistério? Sem dizer uma palavra, tirei o relógio e o estendi para ele. JF arqueou as sobrancelhas e avaliou o objecto. Examinou-o detidamente por alguns segundos, antes de devolvê-lo com olhar intrigado. O que acha?, perguntei. Bem, parece ser um relógio, replicou JF. Quem é esse tal de Germán? Não tenho a mínima ideia. Comecei a contar detalhadamente a aventura de dias antes no casarão arruinado. JF ouviu atentamente o relato dos acontecimentos com a paciência e a atenção quase científica que o caracterizavam. Ao final da narrativa, pareceu avaliar o assunto antes de dar as suas primeiras impressões.
Em poucas palavras, você roubou o relógio, concluiu. Não é essa a questão, repliquei. Teríamos que ver qual é a opinião do tal Germán a esse respeito, acrescentou JF. É muito provável que o tal Germán esteja morto há muitos e muitos anos, sugeri, não muito convencido.

JF esfregou o queixo. Também me pergunto o que dirá o Código Penal acerca do furto premeditado de objectos pessoais e relógios com dedicatórias..., observou o meu amigo. Não houve premeditação nem vítimas fatais, protestei. Tudo aconteceu de repente, nem tive tempo de pensar. Quando percebi que estava com o relógio, já era tarde demais. No meu lugar, você teria feito a mesma coisa. Em seu lugar, eu teria sofrido uma paragem cardíaca, esclareceu JF, que era antes um homem de palavras do que um homem de acção. Supondo que fosse louco o suficiente para invadir um casarão atrás de um gato diabólico. Quem pode saber os tipos de germes que se pode pegar de um bicho desses... Ficamos em silêncio por alguns segundos, ouvindo o eco distante da chuva. Bem, concluiu JF, o que está feito, está feito. Não está pensando em voltar lá, está? Sorri. Sozinho, não. Os olhos do meu amigo se arregalaram, grandes como pratos. Ah, não! Nem pensar.
Naquela mesma tarde, quando as aulas terminaram, JF e eu escapulimos pela porta da cozinha e pegamos a misteriosa rua que levava ao palacete. O pavimento de pedras estava cheio de poças e montes de folhas. Um céu ameaçador cobria a cidade. JF, que não parecia muito convencido, estava mais pálido do que nunca. A visão daquele lugar preso no passado deixava o seu estômago do tamanho de uma bolinha de gude. O silêncio era ensurdecedor. Acho que a melhor coisa é dar meia-volta e ir embora daqui,  murmurou, retrocedendo alguns passos. Você parece uma galinha assustada.
As pessoas não sabem apreciar o valor de uma galinha. Sem ela não teríamos ovos nem... De repente, o tilintar de um guizo se espalhou no vento. JF emudeceu. Os olhos amarelos do gato nos observavam. De repente, o animal deu um chiado de serpente e mostrou as garras. Os pelos do lombo se eriçaram e a sua mandíbula exibiu os mesmos dentes que tinham ceifado a vida de um pardal dias atrás. Um relâmpago distante acendeu uma caldeira de luz na cúpula do céu. JF e eu trocamos um olhar. Quinze minutos depois estávamos sentados num banco junto ao tanque do claustro do internato. O relógio continuava no bolso do meu casaco. Mais pesado do que nunca. Ficou ali pelo resto da semana, até à madrugada de sábado». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT