Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Deu uma olhada
na fotocópia e lançou-me um olhar enviesado. Procure na letra i de idiota e vai ver que não sou o
único famoso por aqui, replicou JF. Naquele dia, ao meio-dia, na hora do pátio,
JF e eu penetrámos sorrateiramente no tenebroso auditório. Os nossos passos no corredor
central despertavam o eco de cem sombras caminhando nas pontas dos pés. Dois raios
de luz prateada caíam sobre o palco empoeirado. Fomos nos sentar naquele clarão
de luz, diante das fileiras de cadeiras vazias que se fundiam na penumbra. O
sussurro da chuva arranhava as vidraças do primeiro andar. Bem, atacou JF, para
que todo esse mistério? Sem dizer uma palavra, tirei o relógio e o estendi para
ele. JF arqueou as sobrancelhas e avaliou o objecto. Examinou-o detidamente por
alguns segundos, antes de devolvê-lo com olhar intrigado. O que acha?,
perguntei. Bem, parece ser um relógio, replicou JF. Quem é esse tal de Germán?
Não tenho a mínima ideia. Comecei a contar detalhadamente a aventura de dias
antes no casarão arruinado. JF ouviu atentamente o relato dos acontecimentos
com a paciência e a atenção quase científica que o caracterizavam. Ao final da narrativa,
pareceu avaliar o assunto antes de dar as suas primeiras impressões.
Em poucas palavras, você roubou o
relógio, concluiu. Não é essa a questão, repliquei. Teríamos que ver qual é a opinião
do tal Germán a esse respeito, acrescentou JF. É muito provável que o tal Germán
esteja morto há muitos e muitos anos, sugeri, não muito convencido.
JF esfregou o queixo. Também me
pergunto o que dirá o Código Penal acerca do furto premeditado de objectos
pessoais e relógios com dedicatórias..., observou o meu amigo. Não houve
premeditação nem vítimas fatais, protestei. Tudo aconteceu de repente, nem tive
tempo de pensar. Quando percebi que estava com o relógio, já era tarde demais.
No meu lugar, você teria feito a mesma coisa. Em seu lugar, eu teria sofrido
uma paragem cardíaca, esclareceu JF, que era antes um homem de palavras do que
um homem de acção. Supondo que fosse louco o suficiente para invadir um casarão
atrás de um gato diabólico. Quem pode saber os tipos de germes que se pode pegar
de um bicho desses... Ficamos em silêncio por alguns segundos, ouvindo o eco
distante da chuva. Bem, concluiu JF, o que está feito, está feito. Não está pensando
em voltar lá, está? Sorri. Sozinho, não. Os olhos do meu amigo se arregalaram,
grandes como pratos. Ah, não! Nem pensar.
Naquela mesma tarde, quando as aulas
terminaram, JF e eu escapulimos pela porta da cozinha e pegamos a misteriosa rua
que levava ao palacete. O pavimento de pedras estava cheio de poças e montes de
folhas. Um céu ameaçador cobria a cidade. JF, que não parecia muito convencido,
estava mais pálido do que nunca. A visão daquele lugar preso no passado deixava
o seu estômago do tamanho de uma bolinha de gude. O silêncio era ensurdecedor.
Acho que a melhor coisa é dar meia-volta e ir embora daqui, murmurou, retrocedendo alguns passos. Você
parece uma galinha assustada.
As pessoas não sabem apreciar o valor
de uma galinha. Sem ela não teríamos ovos nem... De repente, o tilintar de um
guizo se espalhou no vento. JF emudeceu. Os olhos amarelos do gato nos
observavam. De repente, o animal deu um chiado de serpente e mostrou as garras.
Os pelos do lombo se eriçaram e a sua mandíbula exibiu os mesmos dentes que
tinham ceifado a vida de um pardal dias atrás. Um relâmpago distante acendeu
uma caldeira de luz na cúpula do céu. JF e eu trocamos um olhar. Quinze minutos
depois estávamos sentados num banco junto ao tanque do claustro do internato. O
relógio continuava no bolso do meu casaco. Mais pesado do que nunca. Ficou ali
pelo resto da semana, até à madrugada de sábado». In Carlos Ruiz Zafón, Marina,
1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
Cortesia de PlanetaE/JDACT