terça-feira, 20 de agosto de 2019

Arquivo Secreto do Vaticano. Coordenação Geral de José Eduardo Franco. «A questão da Verdade passa a ser relevante para o culto dos deuses, e este, antes metafisicamente agnóstico e relativista…»

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Expansão Portuguesa. Oriente
«(…) Ateus, entenda-se, em relação aos gestos do culto em que se expressava e assegurava oficialmente, no sentido etimológico de serviço e obediência, a pertença à Cidade. Acresce que, na cosmovisão animista dos antigos, essa recusa da religião pública se traduzia numa repugnância quase física, dada a identificação dos ídolos, primeiro com os daimones e, depois, com os demónios da literatura apocalíptica inter-testamentária. Também por isso eram ditos, em grego, asebeioi, isto é, ímpios, sem religião. Faltava-lhes a pietas, o sentimento filial de pertença e submissão à pátria, cuja solidez fora garantida pela virtude da religio, ou cultus deorum, em que, dissera-o Cícero espelhando um lugar-comum, Roma sempre se distinguira acima das demais cidades, granjeando assim o seu imperium civile. Não admira pois que o título de condenação não tardasse a assumir explicitamente uma reivindicação por parte do poder político. A diferença do cristão vinha a ser fundamentalmente o metro eterno com que media a sociedade e esse poder (que a cristandade, não por acaso, chamará temporal). No contexto de uma sua pretensão absoluta, essa diferença era percebida como recusa da cidadania e o cristão tornava-se hostis publicus, um inimigo do Estado, diríamos hoje.
O que é certo é que, de facto, num primeiro momento, a dimensão religiosa (que, na realidade dos factos, significava idolátrica) permanece alheia tanto à auto-percepção, como à hetero-percepção do cristianismo. Os apologetas procuraram o diálogo (ou a polémica), não com os sacerdotes nem com os mistagogos orientais, mas sim com outros parceiros e interlocutores que lhes pareciam mais conaturais, isto é, os filósofos, tal como eram vistos no período helenista. As suas escolas (em latim, sectae) é que eram originariamente designadas pelo sufixo grego ismos e também eles diziam viver sob o signo da busca da Verdade e do Bem (verum et bonum). Com efeito, só quando o cristianismo, precisamente em Roma, tomar consciência de ser religião (e fá-lo-á por excelência ao reivindicar, num significativo híbrido filosófico-religioso, o estatuto antes inaudito de religio vera), é que os cultos, a partir do paradigma cristão, se passarão a designar com tal sufixo.
Esta já não é, para o nosso propósito, uma consequência de somenos. Por ela se pode ver que, uma vez identificado o cristianismo com a dimensão religiosa, foi afectada muito mais a noção de religião do que a de cristianismo. A questão da Verdade passa a ser relevante para o culto dos deuses, e este, antes metafisicamente agnóstico e relativista, passa a ser encarado como um sistema, ultimamente frustrado, embora, se não for Revelado, de afirmações potencialmente válidas do ponto de vista metafísico. Este aspecto não nos pode ser indiferente pois pauta toda a história da missionação. Por um lado, a possibilidade de uma filosofia cristã permitirá ainda aos missionários da modernidade o exercício da controvérsia escolástica junto dos bonzos. Procedente de fins do século XVIII, a documentação aqui alusiva à Coreia ilustra esse tipo originário de penetração cultural conatural ao cristianismo das origens. Integrado numa embaixada a Pequim chefiada pelo pai, o coreano Ly do Documento nº 524, (Ly-Seun-Houn, mais conhecido pela transcrição inglesa Lee-Sung-Hoon), foi expressamente enviado por Ly-Byok (Lee Byeok) que, como filósofo em busca da verdade, lera as obras de Ricci, vindas de Pequim (milagres dos ideogramas chineses!), e fundara um cenáculo de letrados-catecúmenos em Chon-Jin-An, hoje sede de um grande santuário. A correspondência formal que com ele entreteve o bispo de Pequim dá conta de não tratar com nenhuma autoridade religiosa e é estruturada nos moldes do diálogo filosófico (na De Deo verax disputatio ele teria aprendido a Ciência do Céu). E isso não obstava à consideração destes dois coreanos como os fundadores da Igreja Católica no país». In José Eduardo Franco (Coordenação Geral) Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della Nunziatura in Lisbona, Centro de Estudos Damião de Góis, Projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-680-032-1.

Cortesia de EsferadoCaos/JDACT