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Expansão
Portuguesa. Oriente
«(…)
Ateus, entenda-se, em relação aos gestos do culto em que se expressava e
assegurava oficialmente, no sentido etimológico de serviço e obediência, a
pertença à Cidade. Acresce que, na cosmovisão animista dos antigos, essa recusa
da religião pública se traduzia numa repugnância quase física, dada a identificação
dos ídolos, primeiro com os daimones e, depois, com os demónios da literatura
apocalíptica inter-testamentária. Também por isso eram ditos, em grego, asebeioi,
isto é, ímpios, sem religião. Faltava-lhes a pietas, o sentimento filial
de pertença e submissão à pátria, cuja solidez fora garantida pela virtude da religio,
ou cultus deorum, em que, dissera-o Cícero espelhando um lugar-comum,
Roma sempre se distinguira acima das demais cidades, granjeando assim o seu imperium
civile. Não admira pois que o título de condenação não tardasse a assumir
explicitamente uma reivindicação por parte do poder político. A diferença do
cristão vinha a ser fundamentalmente o metro eterno com que media a sociedade e
esse poder (que a cristandade, não por acaso, chamará temporal). No contexto de
uma sua pretensão absoluta, essa diferença era percebida como recusa da
cidadania e o cristão tornava-se hostis publicus, um inimigo do Estado,
diríamos hoje.
O
que é certo é que, de facto, num primeiro momento, a dimensão religiosa (que,
na realidade dos factos, significava idolátrica) permanece alheia tanto à auto-percepção,
como à hetero-percepção do cristianismo. Os apologetas procuraram o diálogo (ou
a polémica), não com os sacerdotes nem com os mistagogos orientais, mas sim com
outros parceiros e interlocutores que lhes pareciam mais conaturais, isto é, os
filósofos, tal como eram vistos no período helenista. As suas escolas (em latim,
sectae) é que eram originariamente designadas pelo sufixo grego ismos e
também eles diziam viver sob o signo da busca da Verdade e do Bem (verum et
bonum). Com efeito, só quando o cristianismo, precisamente em Roma, tomar
consciência de ser religião (e fá-lo-á por excelência ao reivindicar, num
significativo híbrido filosófico-religioso, o estatuto antes inaudito de religio
vera), é que os cultos, a partir do paradigma cristão, se passarão a
designar com tal sufixo.
Esta
já não é, para o nosso propósito, uma consequência de somenos. Por ela se pode
ver que, uma vez identificado o cristianismo com a dimensão religiosa, foi
afectada muito mais a noção de religião do que a de cristianismo. A questão da Verdade
passa a ser relevante para o culto dos deuses, e este, antes metafisicamente agnóstico
e relativista, passa a ser encarado como um sistema, ultimamente frustrado, embora,
se não for Revelado, de afirmações potencialmente válidas do ponto de vista
metafísico. Este aspecto não nos pode ser indiferente pois pauta toda a
história da missionação. Por um lado, a possibilidade de uma filosofia cristã
permitirá ainda aos missionários da modernidade o exercício da controvérsia
escolástica junto dos bonzos. Procedente de fins do século XVIII, a
documentação aqui alusiva à Coreia ilustra esse tipo originário de penetração
cultural conatural ao cristianismo das origens. Integrado numa embaixada a
Pequim chefiada pelo pai, o coreano Ly do Documento nº 524, (Ly-Seun-Houn, mais
conhecido pela transcrição inglesa Lee-Sung-Hoon), foi expressamente enviado
por Ly-Byok (Lee Byeok) que, como filósofo em busca da verdade, lera as obras
de Ricci, vindas de Pequim (milagres dos ideogramas chineses!), e fundara um
cenáculo de letrados-catecúmenos em Chon-Jin-An, hoje sede de um grande
santuário. A correspondência formal que com ele entreteve o bispo de Pequim dá
conta de não tratar com nenhuma autoridade religiosa e é estruturada nos moldes
do diálogo filosófico (na De Deo verax disputatio ele teria aprendido a
Ciência do Céu). E isso não obstava à consideração destes dois coreanos como os
fundadores da Igreja Católica no país». In José Eduardo Franco (Coordenação Geral)
Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della Nunziatura in Lisbona, Centro de
Estudos Damião de Góis, Projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN
978-989-680-032-1.
Cortesia
de EsferadoCaos/JDACT