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de wikipedia e jdact
O
Contrato da Carne
«(…) Isso é vida de freira. Uma
luz forte entrava através das gelosias por onde se avistavam mastros de navios
e o trapiche, roupas de cores vivas penduradas ao sol, sacadas e rótulas de
treliças. Ouviam-se cavalos passando, gente gritando, crianças. Mariana animou-se
com os ruídos da rua e as luzes que invadiam aquele aposento com cheiro de
mofo. Sobre uma almofada, viu o caixote com letras douradas. Chegou na frota,
não? Fernando abriu a caixa e retirou o pano, exibindo o retrato com veneração.
Nosso rei! Mariana flexionou os joelhos, em cumprimento. Majestade. O rei!, em
efígie. É como se estivesse presente entre nós. Mariana curvou-se de novo, agora
com muito mais reverência. Os olhos do governador brilhavam. Sabeis o que
significa a presença do rei no Rio de Janeiro?, disse Fernando, sem desviar a sua
atenção do retrato. A graça real. O poder divino e humano, senhor da vida e da morte
dos homens. Os únicos limites do rei são o próprio rei. Ele tem mesmo as sobrancelhas
arqueadas. Dona Maria Clara o viu pessoalmente. Significa tenças, empregos, privilégios,
benefícios, honra. Poder. Ele é tão jovem, disse Mariana.
Fernando cobriu o retrato. Sobre
a mesa do governador havia papéis, tinteiro, areeiro e pena, lacre, um rolo de
fita de veludo, relíquias, uma pequena escultura dourada de nereidas nuas entre
serpentes marinhas. Quereis tomar algo? Porto? Não, disse Mariana. O governador
fez sinal para que o mordomo se retirasse. Ficaram a sós. Como vai vossa
mulher? Como sempre, ocupada com costuras ou bilros. E os mancebinhos? Estão
todos bem. E vós? Tenho andado bastantemente cansado. É muito mais difícil
governar o Rio de Janeiro que Pernambuco. Aqui há problemas imensos, serão mais
dois anos de lutas sem tréguas. Fernando tinha que governar as armas e presidir
às juntas da Justiça e da Fazenda, com inspecção sobre o estado político,
conforme regimentos aprovados pelo rei. Mas como fazer isso se os provedores,
ouvidores, tesoureiros, procuradores, escrivães se engalfinhavam?
Além das questões internas o governador
devia enfrentar piratas que atacavam em Cabo Frio, franceses rondando e planeando
assaltos pelo mar, espiões europeus, soldados que desertavam, o descaminho do
ouro, rusgas, desinteligências, antagonismos, paixões, devassidão. Cruzei com o
bispo no corredor. Fingiu não me ver. Não creio, prima. Devia estar mesmo cego.
Depara-se com problemas terríveis, no momento. Está sem catedral. Espera
esmolas do povo a fim de construir a nova Sé, pois o rei não lhe enviou o
dinheiro de que precisa. Não podeis dar uns dez mil cruzados de esmola? Vou
mandar o senhor Tenório verificar.
Mariana apalpou a bolsa de cintura.
Sentiu o volume dos papéis com as contas feitas por Tenório. Desistiu de mostrá-los
ao primo; era melhor ser roubada pelo amanuense. Uma dama, dizia sua mãe, não
devia revelar nem a si mesma as suas fraquezas. Dona Mariana, soube que andastes
vendendo propriedades. Estais com problemas de fazenda? Ah, Deus, não tendes
nada que investigar a minha vida. Não vou dar a ninguém o prazer de saber-me
arruinada. Uma chusma começou a berrar na rua. Um cortejo fúnebre, ao passar diante
do Carmo, estava sendo dissolvido pelos padres que brandiam paus no ar,
golpeando os acompanhantes do enterro que vingavam com murros, pontapés,
pedradas. Os carmelitas não se conformam com o privilégio da Misericórdia de realizar
funerais, disse Fernando. Sabeis quanto se lucra com um enterro? Porque estais
sempre contra os padres?» In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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