sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Mariana apalpou a bolsa de cintura. Sentiu o volume dos papéis com as contas feitas por Tenório. Desistiu de mostrá-los ao primo; era melhor ser roubada pelo amanuense»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Contrato da Carne
«(…) Isso é vida de freira. Uma luz forte entrava através das gelosias por onde se avistavam mastros de navios e o trapiche, roupas de cores vivas penduradas ao sol, sacadas e rótulas de treliças. Ouviam-se cavalos passando, gente gritando, crianças. Mariana animou-se com os ruídos da rua e as luzes que invadiam aquele aposento com cheiro de mofo. Sobre uma almofada, viu o caixote com letras douradas. Chegou na frota, não? Fernando abriu a caixa e retirou o pano, exibindo o retrato com veneração. Nosso rei! Mariana flexionou os joelhos, em cumprimento. Majestade. O rei!, em efígie. É como se estivesse presente entre nós. Mariana curvou-se de novo, agora com muito mais reverência. Os olhos do governador brilhavam. Sabeis o que significa a presença do rei no Rio de Janeiro?, disse Fernando, sem desviar a sua atenção do retrato. A graça real. O poder divino e humano, senhor da vida e da morte dos homens. Os únicos limites do rei são o próprio rei. Ele tem mesmo as sobrancelhas arqueadas. Dona Maria Clara o viu pessoalmente. Significa tenças, empregos, privilégios, benefícios, honra. Poder. Ele é tão jovem, disse Mariana.
Fernando cobriu o retrato. Sobre a mesa do governador havia papéis, tinteiro, areeiro e pena, lacre, um rolo de fita de veludo, relíquias, uma pequena escultura dourada de nereidas nuas entre serpentes marinhas. Quereis tomar algo? Porto? Não, disse Mariana. O governador fez sinal para que o mordomo se retirasse. Ficaram a sós. Como vai vossa mulher? Como sempre, ocupada com costuras ou bilros. E os mancebinhos? Estão todos bem. E vós? Tenho andado bastantemente cansado. É muito mais difícil governar o Rio de Janeiro que Pernambuco. Aqui há problemas imensos, serão mais dois anos de lutas sem tréguas. Fernando tinha que governar as armas e presidir às juntas da Justiça e da Fazenda, com inspecção sobre o estado político, conforme regimentos aprovados pelo rei. Mas como fazer isso se os provedores, ouvidores, tesoureiros, procuradores, escrivães se engalfinhavam?
Além das questões internas o governador devia enfrentar piratas que atacavam em Cabo Frio, franceses rondando e planeando assaltos pelo mar, espiões europeus, soldados que desertavam, o descaminho do ouro, rusgas, desinteligências, antagonismos, paixões, devassidão. Cruzei com o bispo no corredor. Fingiu não me ver. Não creio, prima. Devia estar mesmo cego. Depara-se com problemas terríveis, no momento. Está sem catedral. Espera esmolas do povo a fim de construir a nova Sé, pois o rei não lhe enviou o dinheiro de que precisa. Não podeis dar uns dez mil cruzados de esmola? Vou mandar o senhor Tenório verificar.
Mariana apalpou a bolsa de cintura. Sentiu o volume dos papéis com as contas feitas por Tenório. Desistiu de mostrá-los ao primo; era melhor ser roubada pelo amanuense. Uma dama, dizia sua mãe, não devia revelar nem a si mesma as suas fraquezas. Dona Mariana, soube que andastes vendendo propriedades. Estais com problemas de fazenda? Ah, Deus, não tendes nada que investigar a minha vida. Não vou dar a ninguém o prazer de saber-me arruinada. Uma chusma começou a berrar na rua. Um cortejo fúnebre, ao passar diante do Carmo, estava sendo dissolvido pelos padres que brandiam paus no ar, golpeando os acompanhantes do enterro que vingavam com murros, pontapés, pedradas. Os carmelitas não se conformam com o privilégio da Misericórdia de realizar funerais, disse Fernando. Sabeis quanto se lucra com um enterro? Porque estais sempre contra os padres?» In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT