quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Céu em Fogo. Mário Sá-Carneiro. «A sumptuosidade inegualavel do misterio!... Sim! Desde criança adivinhei que a unica forma de volver rutilante uma vida, e bela, verdadeiramente bela em ameias a marfim e ouro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Grande Sombra
A Fernando Pessoa. Dezembro de 1905
«O Misterio... Oh!, desde a infancia esta obsessão me perturba, o seu encanto me esvai... No grande quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular da luz indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia que as sombras de subito transviassem, animando-se, e monstros, monstros de bruma, corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me... Horas longes, porém, de medo infantil, só vos posso recordar em saudade. É que então, se sofria, a minha febre era já a cores, voluptuosidade arraiada também. E assim, quantas horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais, eu ansiava a noite, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios prateados... As grandes casas ás escuras onde nunca entrara e que, no entanto, bem conhecia de as percorrer iluminadas, eu, do meu leito, imaginava-as, criava-as agora no silencio e na treva, fantasticas: terrificantes e maravilhosas.
Pensava: Oh!, a gloria de passear nelas por esta solidão, de tactear o que haverá dentro delas!... E vinham-me ideias de, sorrateiramente, descalço, para as criadas não sentirem, erguer-me da minha pequena cama branca de taipais e partir a visita-las... Mas era mais forte do que a ansia o meu pavor... Escondia a cabeça debaixo dos lençois, mesmo de verão, até que adormecia esquecido, fundamente... As grandes casas ás escuras... Ainda hoje não sei entrar nelas tranquilo... E evito sempre percorre-las... De mais a minha inteligencia sabe coisa alguma de espectral existir aí, magicas vibrações, indicios nenhuns de sortilegio ondular ao redór... Mas receio sempre... E lembram-me fantasmas... triangulos frios... espadas nuas... listas de fôgo doutras cores... Tremo e vacilo. Retrocedo...
A sumptuosidade inegualavel do misterio!... Sim! Desde criança adivinhei que a unica forma de volver rutilante uma vida, e bela, verdadeiramente bela em ameias a marfim e ouro, seria lograr referi-la ao misterio, inclui-la nêle... Mas como, meu Deus, como?... Procurando, descendo bem as trevas, acumulando imperialmente enigma sobre enigma. Oh... debalde, debalde, até hoje, tenho buscado segredos para ungir com êles a minha existência, imortalisa-la de Sombra... À minha volta é tudo bem certo, mais do que certo, real sem remedio... Só a minha imaginação vence ainda tremular mistérios, misterios porém de fumo; quebrantos a vago, lendarios... E a luz sempre sobre mim, a luz, certeza tosca, material... Tambem já na infancia, de resto, era assim em verdade. Só em fantasia me amedrontava, só com ela ia achar um enlevo delicioso e inquieto nos alçapões, nos subterraneos (se me falavam dalgum palacio antigo) e nas pontes, nos zimborios, nos grandes arcos, bem como já me passavam ás vezes, em calafrios, vagas reminiscencias de aquedutos negros, que eu nunca vira, decerto. Mas havia sobretudo no predio da nossa quinta um sótão inexplicavel que durante os anos da minha infancia foi para mim o centro de todo um mundo misterioso.
Esse sótão, ao que uma só vez vagamente entrevira, não tinha sobrado. Era, concluo hoje, apenas um desvão entre o telhado e o forro da casa, sendo um corpo do edificio mais alto do que o outro. De longe a longe os criados vinham limpa-lo, creio. Deixar-me-hiam entrar, talvez, mas não o tentei nunca, com medo: e percebo agora que o meu receio era apenas de o ficar conhecendo realmente, e assim perder aos meus olhos todo o seu encanto.  Ah! mas as vezes que eu subia até á sua porta, a escutar... Pelas frestas o vento entrava redemoinhando; de espaço a espaço o vigamento rangia, e tudo isso se transtornava na minha imaginação em bater de asas negras, arrastar de correntes... crepitar de ossos, quem sabe... Certo dia a minha coragem foi até entreabrir a porta... Lá dentro, penumbra densa, emtanto, um raio de sol da tarde, coando-se por uma fresta, iluminava em magicas palpitações um halo de poeira multicolor... Assombrado, cego da maravilha, fechei a porta no mesmo instante, fugi...» In Mário Sá-Carneiro, Céu em Fogo, 1914, Portal da Literatura, Bibliotrónica Portuguesa, Lisboa, 2015.

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