Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Comprei flores, frutos, caminhei a esmo. Ser
aposentado e ser um rebotalho parece quase a mesma coisa. A palavra me
congelava. Espantava-me a extensão dos meus lazeres. Estava errada. O tempo, às
vezes, parece custar a passar mas eu me arranjo. E que prazer viver sem
obedecer a ordens, sem constrangimento! Há ocasiões em que me assombro.
Lembro-me do primeiro posto, de minha primeira classe, as folhas mortas que
rangiam sob os passos no outono provinciano. Então, o dia da reforma, distante
de mim um lapso de tempo duas vezes mais longo ou quase, que minha vida
anterior, me parecia irreal como a própria morte. E eis que há um ano ele
chegou. Passei outras barreiras, porém fluidas. Esta tem a rigidez de uma
cortina de aço. Voltei e me sentei à minha mesa: sem trabalho,
mesmo esta alegre manhã me pareceria insípida. Lá pelas 13 horas parei e fui
pôr a mesa na cozinha: igualzinha à cozinha de minha avó em Milly, gostaria de
rever Milly, com sua mesa de quinta, os seus cobres, seus bancos, o tecto com
as vigas descobertas. Só que há um fogão a gás em lugar do grande fogão a lenha
com forno, e um frigorífico elétric. (Em que ano apareceram as primeiras frigidaires
na França? Comprei a minha há dez anos, mas já era
um artigo comum. Quando? Antes da guerra? Logo depois? Eis aí uma das coisas
que não me lembro). André chegou tarde. Tinha-me prevenido que, ao sair do
laboratório, tomaria parte numa reunião sobre a force de frappe. Perguntei: foi bem? Acertámos um novo manifesto. Mas não tenho ilusões. Não terá mais
repercussão que os outros. Os franceses estão pouco ligando. Para a force de frappe,
para a bomba atómica, para tudo, em geral. Às vezes
me dá vontade de… Ir para Cuba, ou Mali. Positivamente, eu sonho. Lá,
poderíamos ser úteis. V não poderia mais trabalhar. Não seria uma grande
desgraça. Coloquei sobre a mesa a salada, o presunto, o queijo, as frutas.
Está
assim tão descorçoado? Não é a primeira vez que não contornam os
acontecimentos... Não. Então? V não quer compreender. Com frequência, ele me
repete que, presentemente, todas as ideias novas vêm dos seus colaboradores,
que está muito velho para inventar: não o creio. Minha última descoberta foi há
quinze anos. Quinze anos… Nenhum período sáfaro atravessado durou tanto tempo.
Mas no ponto em que chegou, sem dúvida, tem necessidade de uma pausa para
encontrar nova inspiração. Penso nos versos de Valéry:
Cada átomo de silêncio
É oportuno ao fruto maduro.
Desta
lenta gestação, vão nascer inesperados frutos. Não terminou a aventura da qual
participei apaixonadamente: a dúvida, os reveses, o aborrecimento, marcar
passo, em seguida a luz entrevista, uma esperança, uma hipótese confirmada. Depois
de semanas e de meses de ansiosa paciência, a embriaguez do êxito. Não
compreendia bem os trabalhos de André mas a minha confiança cabeçuda fortalecia
a sua. Ela permanece intacta. Mas por que não posso mais transmiti-la? Eu me
recuso a crer que não verei jamais brilhar nos seus olhos a alegria febril da
descoberta. Disse: nada prova que V não terá uma segunda inspiração. Não. Na
minha idade temos hábitos que travam a invenção. Cada ano que passa fico mais
ignorante. Tornaremos a tocar no assunto daqui a dez anos. Aos setenta anos, talvez,
fará a sua maior descoberta. Isso é bem o seu optimismo! Garanto-lhe que não. É
bem o seu pessimismo! Rimos. Entretanto, não há do que rir. O derrotismo de
André não tem fundamento, desta feita ele carece de rigor. Sim, Freud escreveu numa
das suas cartas que numa certa idade não se inventa mais nada e isso é
desolador. Mas ele era, então, muito mais velho que André. Não importa.
Injustificada embora, essa melancolia não me entristece menos. Se André se
entrega é que, de um modo geral, ele está em crise». In Simone
Beauvoir, A Mulher Desiludida, La Femme Rompue, 1967/1968, Editora Nova
Fronteira, Difusão Europeia do Livro, 2015, Wikipedia.
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