sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Maya. Jostein Gaarder. «A última etapa da expedição de dois meses pelo Pacífico era Taveuni, uma das ilhas Fiji. A minha missão consistia em estudar como as espécies vegetais e animais…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Querida Vera
«(…) Preocupa-me um pouco o facto de que talvez V só entre na internet mais tarde, e fico tentado a ir enviando este relatório por partes. Mas V vai receber tudo de uma vez só: ou tudo ou nada. Ocorreu-me que eu poderia lhe mandar um e-mail dizendo que amanhã pela manhã V. receberia uma mensagem. Mas não sei se V deseja continuar tendo notícias minhas. Além do mais, terei de me esforçar bastante para que acredite nesta história e, como sabe, ainda não a escrevi. Fui envolvido nesta teia de aranha em Fiji e não me lembro mais do que contei, pois só nos vimos alguns dias, e creio que nos pareceu, tanto a mim como a V, mais adequado manter certa distância, por razões de decoro. Lembro que, quando julguei ter avistado aquele estranho casal em Fiji, tudo começou a se mover como uma avalanche, mas sou incapaz de me lembrar do que contei ou deixei de contar, porque me interrompia o tempo todo com as suas gargalhadas, já que pensava que tudo era uma invenção minha, que eu estava improvisando, como numa espécie de espectáculo nocturno, com o único fim de retê-la a meu lado junto do rio.
Vai perguntar o que Ana e José têm a ver comigo, ou connosco, se preferir. E eu vou lembrar-lhe um postal que certa vez me mandou de Barcelona. Será que eu e V podemos fazer alguma coisa para aceitar que a vida seja tão breve?, escreveu. Agora sou eu que faço a pergunta, mas para respondê-la tenho de falar primeiro de Ana e José. Para compreender o alcance da minha tarefa, V terá inclusive de retroceder comigo um pouco mais no tempo, talvez até ao Devoniano, período em que entraram em cena os primeiros anfíbios. Na minha opinião, é aí que começa esta história. Independentemente do que venha a acontecer connosco, vou pedir-lhe um favor. Instale-se bem confortavelmente e leia, leia!

Vê melhor, quem vê por último
A última etapa da expedição de dois meses pelo Pacífico era Taveuni, uma das ilhas Fiji. A minha missão consistia em estudar como as espécies vegetais e animais importadas intervieram no equilíbrio ecológico. Trata-se de passageiros clandestinos como ratos e camundongos, insectos e lagartixas, assim como de uma importação mais ou menos planeada de espécies como o opossum e o mangusto, feita para pôr em xeque outras espécies, em particular os bichos relacionados a novas formas de agricultura. Um terceiro grupo é constituído de animais domésticos extraviados, como gatos, cabras, porcos, não esquecendo as descuidadas fontes de carne, ou presas de fácil acesso, representadas por animais herbívoros como coelhos e corços. No que se refere às plantas, tanto decorativas como alimentícias, a lista das espécies importadas é tão longa e, além disso, varia tanto de ilha para ilha, que não vale a pena citar nomes.
A parte sul do Pacífico é um paraíso para a realização desse tipo de estudo, pois essas ilhas isoladas mantinham cada uma, até bem pouco tempo atrás, o seu antiquíssimo equilíbrio ecológico com uma rica variedade de espécies vegetais e animais endémicas. Hoje em dia, proporcionalmente à sua superfície e a seu número de habitantes, a Oceânia tem a maior percentagem de espécies animais em perigo de extinção. Esse facto não se deve unicamente à importação de novas espécies, mas também ao desflorestamento e à exploração imprudente de plantações, que causaram uma erosão fatal da terra, o que em última instância arruinou os habitats tradicionais. Várias das ilhas que visitei não haviam praticamente estado em contacto com a cultura europeia até há pouco mais de cem anos. Estamos diante da última grande vaga de colonização ocidental. É óbvio que cada ilha, cada novo assentamento e cada pequeno porto têm a sua própria história. Apesar disso, as consequências ecológicas tiveram o mesmo e triste denominador comum: os clandestinos dos navios, ratos, camundongos e insectos, foram como uma praga ecológica que chegou com as primeiras embarcações. Para sanear os efeitos daninhos dessas espécies importadas, procedia-se à importação de uma nova espécie, por exemplo, sapos, que manteriam sob controle certos insectos, sobretudo nas plantações de cana, ou se importavam felinos a fim de combater os ratos. Essas espécies se transformariam mais tarde numa peste pior ainda do que tinham sido os ratos e os insectos, levando à importação de uma nova espécie de animais predadores, com a função de manter sob controle sapos, cobras e ratos. Esses animais logo se tornavam uma catástrofe ecológica para muitas espécies de aves, entre outras, mas também para muitos dos répteis autóctones, o que trazia consigo a necessidade de uma espécie de predador ainda maior, e assim por diante, Vera». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT