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«(…) Apesar de ser este o quadro
geral, durante o século XII certos intelectuais como Ruperto Deutz, Hugo S.
Vítor, Honório Augustodunensis e Domingo Gundisalvo não só colocaram as artes
plásticas no topo das artes mecânicas como, em certos casos, consideraram que
as artes dos metais, a ourivesaria, a pintura e a escultura podiam ser
equiparadas às artes liberais (Kessler, 2004). Convém notar, porém, que estas
opiniões inovadoras foram claramente minoritárias. A diferenciação entre o
artista e o artesão começou a esboçar-se apenas pelos finais do século XIII nas
repúblicas italianas com o despontar da cultura proto-humanista (Warnke; Chastel,
Kessler). A diminuição do papel das instituições religiosas na encomenda de
obras de arte, suplantadas pelos leigos ao longo do século XIV, e a valorização
do papel dos artistas dentro das cortes dos príncipes, ao longo do século XV,
tanto em Itália como noutros territórios, contribuiu para valorizar os artistas
face aos artesãos, integrando-os, muito lentamente, no domínio das artes
liberais.
Neste processo secular de
alteração do estatuto dos artistas, a relação entre o valor dado aos materiais
e o valor dado à habilidade do executante vai-se alterando no sentido de uma
diminuição da importância do primeiro para uma valorização do segundo. Como refere
Michael Baxandall (1974), com o Renascimento a exibição da opulência do
encomendante endinheirado passa de um consumo conspícuo de materiais
dispendiosos, designadamente o ouro e o azul ultramarino, para o consumo conspícuo
da habilidade do pintor, cuidadosamente assegurada nas disposições contratuais
dessa época.
Um dos equívocos dos estudos
dedicados à pintura portuguesa primitiva consiste, precisamente, em ignorar a
dicotomia entre artes liberais e artes mecânicas prevalecente no período em
estudo, substituindo-a por outra dicotomia mais recente, consolidada apenas
entre o Renascimento e o barroco. Referimo-nos à anacrónica sobrevalorização da
pintura em relação às outras artes, no contexto de uma diferenciação mais ampla
entre artes maiores e artes menores. Como mencionámos, na Idade Média o
estatuto dos pintores era idêntico ao de outros artesãos. Na esfera daquilo que
hoje em dia classificamos como artes plásticas, as actividades mais valorizadas
encontravam-se no domínio da iluminura e da arte dos metais, especialmente na
ourivesaria. Considerar a arte da pintura, ou o desenho, como uma actividade maioritariamente mental, isto é,
liberal, implicava criar uma diferenciação entre o artista e o artesão. Por isso,
a elevação da pintura, da escultura e da arquitectura ao estatuto de
belas-artes, consumada nas academias do século XVII, teve o efeito de
desvalorizar as outras actividades artísticas, como a ourivesaria, a joalharia,
a cerâmica, as artes dos metais, a iluminura, a azulejaria, a medalhística, etc..
Os historiadores da arte, fiéis
intérpretes desta diferenciação classificativa, mantiveram a hierarquização das
actividades artísticas projectando-a a culturas, geografias e épocas onde elas
não fazem grande sentido. Entre a Alta Idade Média e o fim da Idade Média
Central, ou seja, desde o século VI até ao final do século XIII, esta hierarquização
das actividades artísticas não só deve ser considerada anacrónica como está
completamente invertida. No período em causa, com a excepção da arquitectura, as
artes que hoje em dia a historiografia denomina como artes menores eram, de
facto, as artes maiores e vice-versa. Mais do que as qualidades plásticas de um
objecto artístico, enaltecia-se o valor dos materiais, o seu custo, a sua
raridade, a sua pureza, a sua resistência, o seu brilho ou a sua transparência.
As peças mais estimadas eram os objectos de ourivesaria, especialmente os que
recorriam ao ouro e às pedras preciosas, adquirindo muitas vezes valores
simbólicos e mágicos. Além de testemunharem a riqueza do respectivo detentor,
tais objectos tinham ainda a virtude de ser feitos com os mesmos materiais
utilizados na construção da Jerusalém Celeste conforme é referido no Apocalipse.
De acordo com o Evangelista, a cidade celeste é construída em ouro, jaspe,
cristal, pérola, safira, calcedónia, esmeralda, cornalina, sardónica,
crisólito, berilo, topázio, jacinto, ametista e crisóprasio». In Luís
Urbano Afonso, Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400), ANTT, Primitivos Portugueses (1450-1550), O século de Nuno
Gonçalves, edição J. A. Carvalho, Lisboa, Athena, 2010.
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