quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400). Luís Urbano Afonso. «Os historiadores da arte, fiéis intérpretes desta diferenciação classificativa, mantiveram a hierarquização das actividades artísticas projectando-a a culturas, geografias e épocas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Apesar de ser este o quadro geral, durante o século XII certos intelectuais como Ruperto Deutz, Hugo S. Vítor, Honório Augustodunensis e Domingo Gundisalvo não só colocaram as artes plásticas no topo das artes mecânicas como, em certos casos, consideraram que as artes dos metais, a ourivesaria, a pintura e a escultura podiam ser equiparadas às artes liberais (Kessler, 2004). Convém notar, porém, que estas opiniões inovadoras foram claramente minoritárias. A diferenciação entre o artista e o artesão começou a esboçar-se apenas pelos finais do século XIII nas repúblicas italianas com o despontar da cultura proto-humanista (Warnke; Chastel, Kessler). A diminuição do papel das instituições religiosas na encomenda de obras de arte, suplantadas pelos leigos ao longo do século XIV, e a valorização do papel dos artistas dentro das cortes dos príncipes, ao longo do século XV, tanto em Itália como noutros territórios, contribuiu para valorizar os artistas face aos artesãos, integrando-os, muito lentamente, no domínio das artes liberais.
Neste processo secular de alteração do estatuto dos artistas, a relação entre o valor dado aos materiais e o valor dado à habilidade do executante vai-se alterando no sentido de uma diminuição da importância do primeiro para uma valorização do segundo. Como refere Michael Baxandall (1974), com o Renascimento a exibição da opulência do encomendante endinheirado passa de um consumo conspícuo de materiais dispendiosos, designadamente o ouro e o azul ultramarino, para o consumo conspícuo da habilidade do pintor, cuidadosamente assegurada nas disposições contratuais dessa época.

Um dos equívocos dos estudos dedicados à pintura portuguesa primitiva consiste, precisamente, em ignorar a dicotomia entre artes liberais e artes mecânicas prevalecente no período em estudo, substituindo-a por outra dicotomia mais recente, consolidada apenas entre o Renascimento e o barroco. Referimo-nos à anacrónica sobrevalorização da pintura em relação às outras artes, no contexto de uma diferenciação mais ampla entre artes maiores e artes menores. Como mencionámos, na Idade Média o estatuto dos pintores era idêntico ao de outros artesãos. Na esfera daquilo que hoje em dia classificamos como artes plásticas, as actividades mais valorizadas encontravam-se no domínio da iluminura e da arte dos metais, especialmente na ourivesaria. Considerar a arte da pintura, ou o desenho, como uma actividade maioritariamente mental, isto é, liberal, implicava criar uma diferenciação entre o artista e o artesão. Por isso, a elevação da pintura, da escultura e da arquitectura ao estatuto de belas-artes, consumada nas academias do século XVII, teve o efeito de desvalorizar as outras actividades artísticas, como a ourivesaria, a joalharia, a cerâmica, as artes dos metais, a iluminura, a azulejaria, a medalhística, etc..
Os historiadores da arte, fiéis intérpretes desta diferenciação classificativa, mantiveram a hierarquização das actividades artísticas projectando-a a culturas, geografias e épocas onde elas não fazem grande sentido. Entre a Alta Idade Média e o fim da Idade Média Central, ou seja, desde o século VI até ao final do século XIII, esta hierarquização das actividades artísticas não só deve ser considerada anacrónica como está completamente invertida. No período em causa, com a excepção da arquitectura, as artes que hoje em dia a historiografia denomina como artes menores eram, de facto, as artes maiores e vice-versa. Mais do que as qualidades plásticas de um objecto artístico, enaltecia-se o valor dos materiais, o seu custo, a sua raridade, a sua pureza, a sua resistência, o seu brilho ou a sua transparência. As peças mais estimadas eram os objectos de ourivesaria, especialmente os que recorriam ao ouro e às pedras preciosas, adquirindo muitas vezes valores simbólicos e mágicos. Além de testemunharem a riqueza do respectivo detentor, tais objectos tinham ainda a virtude de ser feitos com os mesmos materiais utilizados na construção da Jerusalém Celeste conforme é referido no Apocalipse. De acordo com o Evangelista, a cidade celeste é construída em ouro, jaspe, cristal, pérola, safira, calcedónia, esmeralda, cornalina, sardónica, crisólito, berilo, topázio, jacinto, ametista e crisóprasio». In Luís Urbano Afonso, Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400), ANTT, Primitivos Portugueses (1450-1550), O século de Nuno Gonçalves, edição J. A. Carvalho, Lisboa, Athena, 2010.

Cortesia de Athena/JDACT