domingo, 2 de agosto de 2015

A Caminhada. Richard P. Evans. «Obrigada por me deixares escrever no teu caderno secreto. E feliz Natal! Este é um Natal muito especial. Um dia, mais tarde, compreenderás isto. Relê estas palavras de vez em quando…»

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«Reza a lenda que quando a areia de Key West se agarra às solas dos nossos sapatos, já não conseguimos voltar para o sítio de onde viemos. Foi o que aconteceu comigo. Encontro-me sozinho, na praia, observando o baptismo de um Sol sanguíneo nas águas do Golfo do México, e já não me é possível voltar ao que deixei para trás. O ar está saturado de odores a água salgada e algas e dos sons das ondas na rebentação e das gaivotas. Uma parte de mim pergunta-se se isto não será um sonho e deseja acordar na cama e constatar que ainda me encontro em Seattle e que McKale percorre as minhas costas suavemente com as unhas, para cima e para baixo. Estás acordado, amor?, sussurrar-me-ia ela, e eu responder-lhe-ia: nem vais acreditar no que acabei de sonhar! Mas não se trata de um sonho... Percorri o país de norte a sul, a pé, e a mulher que amo nunca mais voltará.
A água que tenho diante de mim é de um azul como o do líquido dos limpa-para-brisas. Sinto a brisa do crepúsculo na minha cara bronzeada e por barbear e cerro os olhos. Percorri um longo caminho para chegar até aqui, quase 5700 quilómetros, mas, de certa forma a minha viagem foi muito mais extensa. Nem sempre as jornadas podem ser medidas em termos de distância física. Deixo deslizar a mochila das costas e sento-me na areia para desatar os atacadores dos meus sapatos e descalçar as meias. As minhas meias de algodão puídas, que já foram brancas mas agora estão cinzentas, agarram-se-me aos pés enquanto as descalço. Em seguida, avanço pela areia húmida e repleta de conchas e espero que a água, em retirada, volte para me cobrir os pés. Passei centenas de horas a pensar neste momento e agora deixo que tudo passe por mim num turbilhão: o vento, a água, o passado e o presente, o mundo que deixei para trás, as pessoas, as vilas e as pequenas cidades que fui encontrando pelo caminho... É difícil acreditar que estou finalmente aqui. Passados alguns minutos, volto ao sítio onde estava, sento-me na areia, de pernas cruzadas, e ponho-me afazer o que sempre faço nos momentos importantes da minha vida: pego numa caneta, abro o diário e começo a escrever.
Ganhei o hábito de escrever há muito tempo, muito antes deste diário e da minha caminhada. Quando eu tinha oito anos de idade, no dia de Natal, a minha mãe ofereceu-me o meu primeiro diário. Era um pequeno caderno com uma capa amarela, de vinilo, com um floreado em relevo. A característica que eu mais apreciava naquele caderno era o facto de ter chave e fechadura em latão. Aquilo fazia-me sentir importante, pois dava-me a sensação de que havia algo tão importante na minha vida que eu tinha de o esconder do resto do mundo. A primeira vez em que escrevi num diário foi nessa noite de Natal. Pareceu-me que, com a fechadura, eu seria a única pessoa a ler o conteúdo do meu diário, por isso escrevi as primeiras linhas como se me dirigisse a mim próprio, o que se tornou um hábito que eu viria a manter pela vida fora.
Caro Alan, É noite de Natal. Recebi uns bonecos articulados Rockem Sockem, um par de walkie-talkies e gomas vermelhas em forma de peixe, que já comi. A minha mãe ofereceu-me este diário com chave e fechadura e disse-me para eu escrever nele todos os dias. Pedi-lhe para escrever algumas palavras na primeira página: Meu querido filho. Obrigada por me deixares escrever no teu caderno secreto. E feliz Natal! Este é um Natal muito especial. Um dia, mais tarde, compreenderás isto. Relê estas palavras de vez em quando e nunca te esqueças de que te amo muito, e sempre amarei. A mãe.
A minha mãe diz que não importa o que eu aqui escreva e que se ficar à espera de escrever apenas as coisas importantes, provavelmente nunca escreverei nada porque aquilo que é importante parece-se com tudo o resto, excepto quando voltamos a pensar nessas coisas. O segredo está em escrevermos o que pensamos e sentimos. Hoje, a minha mãe pareceu-me melhor, Tenho a sensação de que recuperará brevemente.
Tenho tocado tantas vezes neste texto que o mesmo já mal se consegue ler. As linhas que a minha mãe escreveu constituíram um daqueles acontecimentos a que ela se referia, pois só se tornaram importantes depois de lidas através do espelho retrovisor da vida. Sucumbiu a um cancro da mama quarenta e nove dias mais tarde, no Dia dos Namorados. Ainda era manhã, cedo, antes da hora em que eu costumava levantar-me para ir para a escola, quando o meu pai me levou ao quarto deles para a ver. Sobre a mesa de cabeceira, ao lado da cama, estava uma única rosa amarela, num pequeno vaso, e o cartão do Dia dos Namorados que eu desenhara em casa, com um coração atravessado por uma seta. O corpo da minha mãe estava presente, mas ela não, pois se estivesse, ter-me-ia sorrido e chamado; teria elogiado o meu desenho. Portanto, eu sabia que ela não estava ali». In Richard P. Evans, A Caminhada, 2010, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-465-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT