«Reza a lenda que quando a areia de
Key West se agarra às solas dos nossos sapatos, já não conseguimos voltar para
o sítio de onde viemos. Foi o que aconteceu comigo. Encontro-me sozinho, na
praia, observando o baptismo de um Sol sanguíneo nas águas do Golfo do México, e
já não me é possível voltar ao que deixei para trás. O ar está saturado de
odores a água salgada e algas e dos sons das ondas na rebentação e das gaivotas.
Uma parte de mim pergunta-se se isto não será um sonho e deseja acordar na cama
e constatar que ainda me encontro em Seattle e que McKale percorre as minhas costas
suavemente com as unhas, para cima e para baixo. Estás acordado, amor?, sussurrar-me-ia
ela, e eu responder-lhe-ia: nem vais acreditar no que acabei de sonhar! Mas não
se trata de um sonho... Percorri o país de norte a sul, a pé, e a mulher que amo
nunca mais voltará.
A água que tenho diante de mim é de
um azul como o do líquido dos limpa-para-brisas. Sinto a brisa do crepúsculo na
minha cara bronzeada e por barbear e cerro os olhos. Percorri um longo caminho para
chegar até aqui, quase 5700 quilómetros, mas, de certa forma a minha viagem foi
muito mais extensa. Nem sempre as jornadas podem ser medidas em termos de distância
física. Deixo deslizar a mochila das costas e sento-me na areia para desatar os
atacadores dos meus sapatos e descalçar as meias. As minhas meias de algodão puídas,
que já foram brancas mas agora estão cinzentas, agarram-se-me aos pés enquanto as
descalço. Em seguida, avanço pela areia húmida e repleta de conchas e espero que
a água, em retirada, volte para me cobrir os pés. Passei centenas de horas a pensar
neste momento e agora deixo que tudo passe por mim num turbilhão: o vento, a
água, o passado e o presente, o mundo que deixei para trás, as pessoas, as vilas
e as pequenas cidades que fui encontrando pelo caminho... É difícil acreditar
que estou finalmente aqui. Passados alguns minutos, volto ao sítio onde estava,
sento-me na areia, de pernas cruzadas, e ponho-me afazer o que sempre faço nos momentos
importantes da minha vida: pego numa caneta, abro o diário e começo a escrever.
Ganhei o hábito de escrever há muito
tempo, muito antes deste diário e da minha caminhada. Quando eu tinha oito anos
de idade, no dia de Natal, a minha mãe ofereceu-me o meu primeiro diário. Era um
pequeno caderno com uma capa amarela, de vinilo, com um floreado em relevo. A característica
que eu mais apreciava naquele caderno era o facto de ter chave e fechadura em
latão. Aquilo fazia-me sentir importante, pois dava-me a sensação de que havia algo
tão importante na minha vida que eu tinha de o esconder do resto do mundo. A
primeira vez em que escrevi num diário foi nessa noite de Natal. Pareceu-me que,
com a fechadura, eu seria a única pessoa a ler o conteúdo do meu diário, por isso
escrevi as primeiras linhas como se me dirigisse a mim próprio, o que se tornou
um hábito que eu viria a manter pela vida fora.
Caro
Alan, É noite de Natal. Recebi uns bonecos articulados Rockem Sockem, um par de
walkie-talkies e gomas vermelhas em forma de peixe, que já comi. A minha mãe ofereceu-me
este diário com chave e fechadura e disse-me para eu escrever nele todos os dias.
Pedi-lhe para escrever algumas palavras na primeira página: Meu querido filho. Obrigada por me
deixares escrever no teu caderno secreto. E feliz Natal! Este é um Natal muito especial.
Um dia, mais tarde, compreenderás isto. Relê estas palavras de vez em quando e nunca
te esqueças de que te amo muito, e sempre amarei. A mãe.
A
minha mãe diz que não importa o que eu aqui escreva e que se ficar à espera de escrever
apenas as coisas importantes, provavelmente nunca escreverei nada porque aquilo
que é importante parece-se com tudo o resto, excepto quando voltamos a pensar
nessas coisas. O segredo está em escrevermos o que pensamos e sentimos. Hoje, a
minha mãe pareceu-me melhor, Tenho a sensação de que recuperará brevemente.
Tenho tocado tantas vezes neste texto
que o mesmo já mal se consegue ler. As linhas que a minha mãe escreveu constituíram
um daqueles acontecimentos a que ela se referia, pois só se tornaram
importantes depois de lidas através do espelho retrovisor da vida. Sucumbiu a um
cancro da mama quarenta e nove dias mais tarde, no Dia dos Namorados. Ainda era
manhã, cedo, antes da hora em que eu costumava levantar-me para ir para a escola,
quando o meu pai me levou ao quarto deles para a ver. Sobre a mesa de
cabeceira, ao lado da cama, estava uma única rosa amarela, num pequeno vaso, e o
cartão do Dia dos Namorados que eu desenhara em casa, com um coração
atravessado por uma seta. O corpo da minha mãe estava presente, mas ela não, pois
se estivesse, ter-me-ia sorrido e chamado; teria elogiado o meu desenho. Portanto,
eu sabia que ela não estava ali». In Richard P. Evans, A Caminhada, 2010, tradução
de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-465-5.
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