sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Os Filipes. António Borges Coelho. «… Acordos de Tomar, podemos pensar que os homens (não havia mulheres) que entregavam o reino ao rei Filipe de Castela eram tão nacionalistas como os que arriscavam a cabeça pelo rei nacional António I»

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«(…) A consciência de identidade portuguesa reforçara-se com a epopeia oceânica que tinha Castela como seu principal competidor e parceiro, mesmo durante os sessenta anos do governo filipino. Aliás, Castela e Espanha reconheciam e todos os dias nomeavam, isolando-a, a identidade portuguesa. E o Império foi o refúgio, a reserva, o suporte material que permitiu a Portugal resistir ao abraço de Castela. As navegações e conquistas eram exaltadas pelos historiadores, pelos autores de livros de viagem, pelos poetas e contadas à sua maneira pelos heróis sobreviventes, piratas e malandros anónimos que chegavam dos mares e regressavam aos lugares portugueses mais recônditos. A cultura e a transmissão oral tinham então um peso que hoje, facilmente, tendemos a subestimar. E mais ainda quando só olharmos para os de cima. Na Peregrinação e nos Lusíadas, obras emblemáticas da cultura universal, os seus autores exaltam como tantos outros, no louvor e na crítica, as façanhas dos aventureiros lusos. O mercantilista cristão-novo Duarte Gomes Solis, depois de afirmar o óbvio, que os portugueses rodearam o mundo todo com poucas embarcações e poucos soldados e chegaram à Índia, conclui: foi a maior façanha que jamais pode contar-se de nação algum.
Mas analisemos os acontecimentos pelo outro lado, pelo lado dos que desejavam a união dos povos ibéricos, mais precisamente a união de Portugal e de Castela. Nos finais do século XIV tentaram juntar pela via do casamento e da força os dois estados peninsulares. A parte mais nova e rica de Lisboa que crescera fora das muralhas foi saqueada e o miolo urbano sujeito a um cerco prolongado e à fome. A tentativa falhou com a eleição dum rei nacional nas Cortes de Coimbra de 1385 e a vitória nos campos de Aljubarrota. Cinco décadas mais tarde, num parecer contrário à jornada de Tânger de 1437, o infante Pedro avisava que, na corrida para Além Mar, Portugal sem Castela e os outros estados ibéricos não chegaria a bom porto. Afonso V voltou a usar as armas para forçar a união e fracassou em Toro. João II e Manuel I insistiram no casamento dos seus príncipes. Falharam. Entretanto, o Tratado de Tordesilhas nascia da consciência, por parte de João II e dos Reis Católicos, da necessidade da partilha e da convergência para descobrir e explorar em exclusivo o mundo desconhecido. A rainha dona Catarina levou a política de casamentos quase até ao limite e criou um partido favorável à junção de Portugal aos Estados de Carlos V e de seu filho Filipe II. Essa política levou à definição e radicalização do seu contrário, bem expressas, depois do cerco de Mazagão, nas Cortes de 1562: case El-Rei em França; trabalhai por que se crie nos costumes de Portugal; vista à portuguesa; coma à portuguesa; fale à portuguesa.
Em 1580 muitos portugueses acreditaram que, sob o governo de Filipe II, não haveria mais ladrões no mar e que o dinheiro havia de nadar pelas ruas. Mas quando lemos o texto dos Acordos de Tomar, podemos pensar que os homens (não havia mulheres) que entregavam o reino ao rei Filipe de Castela eram tão nacionalistas como os que arriscavam a cabeça pelo rei nacional António I. Os Acordos de Tomar insistiam quase obsessivamente: a língua oficial será a portuguesa, os benefícios, as fortalezas, as capitanias, as instituições, os tribunais ficarão em mãos portuguesas. A aceitação de Filipe como rei de Portugal também incomodou alguns fidalgos que tomavam o seu partido. As maiores Casas senhoriais portuguesas formaram-se no rescaldo de Aljubarrota. Aquela gesta marcava os seus pergaminhos. Também não faltaram letrados a defender, em 1580, que ao reino cabia eleger rei como o fizera em Coimbra em 1385. Há quem considere que nos 60 anos de agregação a Castela a identidade hispânica funcionou e se revelou e se sobrepôs à identidade nacional. O sentimento de identidade hispânica existiu e existe. Até aos finais do século XIV os estudantes portugueses de Bolonha declaravam-se hispanos como Pedro Hispano, o papa João XXI. Mas a partir de 1384 declaram-se lusitanos. No século XVI, o humanista André Resende, em carta ao seu amigo castelhano Bartolomeu Quevedo, escrevia hispani sumus (somos hispanos). E somos. Só que os acontecimentos políticos e militares, parecem demonstrar que não prevaleceu o sentimento de unidade hispânica mas a força militar, os interesses, a compra, a propaganda e a permanência de guarnições militares de Castela até 1640». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT