quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Diabo dos Números. Hans Enzensberger. «Pois bem, Roberto, o velhote sorria agora outra vez, não há apenas números infinitamente grandes, mas também infinitamente pequenos. E eles são infinitos. Com estas palavras, o mafarrico fez rodar a bengala como uma ventoinha»

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«(…) Estás apenas a fazer pouco de mim, disse o Roberto. Não confio em ti. Se me atormentares com trabalhos de casa, ainda por cima no sonho, começo a gritar. Isso é exploração do trabalho infantil! Se eu tivesse sabido que eras um cobarde tão grande disse o Diabo dos Números, nem sequer tinha vindo. Afinal, vim apenas para conversar um pouco contigo. Tenho a maioria das noites livres, e então pensei: … vou visitar o Roberto, deve estar farto de deslizar sempre pelo mesmo escorrega. É verdade. Pois então. Mas não me deixo enganar!, gritou o Roberto. Põe isso na tua cabeça. Então o Diabo dos Números deu um grande salto, e de um momento para o outro já não era assim tão pequeno. Não se fala dessa maneira com um Diabo!, gritou. Pisoteou a erva em volta até os caules ficarem espalmados no chão; os seus olhos deitavam chispas. Desculpa-me, murmurou o Roberto. Tudo aquilo começou a parecer-lhe um pouco inquietante.
Se é tão simples falar de Matemática da mesma maneira que de filmes ou de bicicletas, para que é preciso um Diabo? Por isso mesmo, meu caro, continuou o velhote. O que há de diabólico nos números é o facto de serem tão simples. Na realidade, tu nem precisas de uma máquina de calcular. Para começar, precisas apenas de uma coisa: o um. Com ele podes fazer quase tudo. Por exemplo, se tens medo dos números grandes, digamos, de cinco milhões setecentos e vinte e três mil oitocentos e doze, começa simplesmente assim:

1+1
1+1+1
1+1+1+1
1+1+1+1+1

e assim sucessivamente até chegares aos cinco milhões e tal. Não digas que isto é demasiado complicado! Isto até o mais idiota compreende. Ou não?
Sim, disse o Roberto. E isto não é tudo, continuou o Diabo dos Números. Tinha agora na mão uma bengala com castão de prata e esgrimia-a à frente do nariz do Roberto. Quando chegares aos cinco milhões e tal, limitas-te a continuar a contar. Vês logo que isso vai até ao infinito. Na verdade, existem infinitos números. O Roberto não sabia se devia acreditar nele. Como é que sabes?, perguntou ele. Já tentaste? Não, não tentei. Primeiro, porque iria demorar demasiado tempo; e, segundo, porque é supérfluo. O Roberto não se deixou impressionar.
Ou eu consigo continuar a contar até lá chegar, e então não é infinito, contrapôs, ou é infinito e eu não consigo contar até chegar lá. Errado!, gritou o Diabo dos Números. O seu bigode tremia, a cara ficou vermelha, a cabeça inchou de raiva e crescia cada vez mais. Errado? Errado porquê?, perguntou o Roberto. Burro! Quantas pastilhas elásticas pensas tu que foram mastigadas até ao dia de hoje em todo o mundo? Não sei. Mais ou menos. Muitas, disse o Roberto. Só o Alberto, a Berta e o Carlitos, e os da minha turma, e os da minha cidade, e os da Alemanha inteira, e os da América..., isto vai para os milhões.
Pelo menos, disse o Diabo dos Números. Bem, suponhamos que chegámos à última pastilha elástica. O que é que eu faço? Tiro do bolso uma nova pastilha elástica e já temos o número de todas as que foram mascadas até então mais uma: a seguinte. Percebeste? Não é preciso contar as pastilhas elásticas. Dou-te apenas uma receita, a maneira como isto continua. Não precisas de mais nada. O Roberto pensou durante um momento. Depois teve de concordar que o homem tinha razão. - A propósito, isto também funciona ao contrário, continuou o velhote. Ao contrário? O que queres dizer com ao contrário?
Pois bem, Roberto, o velhote sorria agora outra vez, não há apenas números infinitamente grandes, mas também infinitamente pequenos. E eles são infinitos. Com estas palavras, o mafarrico fez rodar a bengala como uma ventoinha diante da cara do Roberto. Assim fico tonto, pensou o Roberto. Era a mesma sensação de quando estava no escorrega, no qual tantas vezes deslizara para a profundidade. Pára!, gritou. Por que estás tão nervoso, Roberto? Isto é tão inofensivo. Repara, vou buscar outra pastilha elástica. Cá está ela…» In Hans Magnus Enzensberger, O Diabo dos Números, 1997, Asa Editores, Porto, 2001, ISBN 972-41-2000-7.

Cortesia ASA/JDACT