«(…) Estás apenas a fazer pouco de mim, disse o Roberto. Não
confio em ti. Se me atormentares com trabalhos de casa, ainda por cima no
sonho, começo a gritar. Isso é exploração do trabalho infantil! Se eu tivesse
sabido que eras um cobarde tão grande disse o Diabo dos Números, nem sequer
tinha vindo. Afinal, vim apenas para conversar um pouco contigo. Tenho a
maioria das noites livres, e então pensei: … vou visitar o Roberto, deve estar
farto de deslizar sempre pelo mesmo escorrega. É verdade. Pois então. Mas não
me deixo enganar!, gritou o Roberto. Põe isso na tua cabeça. Então o Diabo dos
Números deu um grande salto, e de um momento para o outro já não era assim tão
pequeno. Não se fala dessa maneira com um Diabo!, gritou. Pisoteou a erva em
volta até os caules ficarem espalmados no chão; os seus olhos deitavam chispas.
Desculpa-me, murmurou o Roberto. Tudo aquilo começou a parecer-lhe um pouco inquietante.
Se é tão simples falar de Matemática da mesma maneira que de
filmes ou de bicicletas, para que é preciso um Diabo? Por isso mesmo, meu caro,
continuou o velhote. O que há de diabólico nos números é o facto de serem tão
simples. Na realidade, tu nem precisas de uma máquina de calcular. Para começar,
precisas apenas de uma coisa: o um. Com ele podes fazer quase
tudo. Por exemplo, se tens medo dos números grandes, digamos, de cinco milhões
setecentos e vinte e três mil oitocentos e doze, começa simplesmente assim:
1+1
1+1+1
1+1+1+1
1+1+1+1+1
…
e assim sucessivamente até chegares aos cinco milhões e tal.
Não digas que isto é demasiado complicado! Isto até o mais idiota compreende. Ou
não?
Sim,
disse o Roberto. E isto não é tudo, continuou o Diabo dos Números. Tinha agora
na mão uma bengala com castão de prata e esgrimia-a à frente do nariz do Roberto.
Quando chegares aos cinco milhões e tal,
limitas-te a continuar a contar. Vês logo que isso vai até ao infinito. Na verdade,
existem infinitos números. O Roberto não sabia se devia acreditar nele. Como é
que sabes?, perguntou ele. Já tentaste? Não, não tentei. Primeiro, porque iria demorar
demasiado tempo; e, segundo, porque é supérfluo. O Roberto não se deixou impressionar.
Ou eu consigo continuar a contar até lá chegar,
e então não é infinito, contrapôs, ou é infinito e eu não consigo contar até chegar
lá. Errado!, gritou o Diabo dos Números. O seu bigode tremia, a cara ficou vermelha,
a cabeça inchou de raiva e crescia cada vez mais. Errado? Errado porquê?, perguntou
o Roberto. Burro! Quantas pastilhas elásticas pensas tu que foram mastigadas até
ao dia de hoje em todo o mundo? Não sei. Mais ou menos. Muitas, disse o
Roberto. Só o Alberto, a Berta e o Carlitos, e os da minha turma, e os da minha
cidade, e os da Alemanha inteira, e os da América..., isto vai para os milhões.
Pelo menos, disse o
Diabo dos Números. Bem, suponhamos que chegámos à última pastilha elástica. O que
é que eu faço? Tiro do bolso uma nova pastilha elástica e já temos o número de todas
as que foram mascadas até então mais uma: a seguinte. Percebeste? Não é preciso
contar as pastilhas elásticas. Dou-te apenas uma receita, a maneira como isto continua.
Não precisas de mais nada. O Roberto pensou durante um momento. Depois teve de concordar
que o homem tinha razão. - A propósito, isto também funciona ao contrário, continuou
o velhote. Ao contrário? O que queres dizer com ao contrário?
Pois bem, Roberto, o
velhote sorria agora outra vez, não há apenas números infinitamente grandes,
mas também infinitamente pequenos. E eles são infinitos. Com estas palavras, o mafarrico
fez rodar a bengala como uma ventoinha diante da cara do Roberto. Assim fico tonto, pensou o Roberto. Era a
mesma sensação de quando estava no escorrega, no qual tantas vezes deslizara
para a profundidade. Pára!, gritou. Por que estás tão nervoso, Roberto? Isto é
tão inofensivo. Repara, vou buscar outra pastilha elástica. Cá está ela…» In
Hans Magnus Enzensberger, O Diabo dos Números, 1997, Asa Editores, Porto, 2001,
ISBN 972-41-2000-7.
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