O
arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…)
A mãe sorria-lhe no sonho, tinha a certeza de se tratar de um sonho, pois não
havia lembrança mais vincadamente marcada na sua memória do que a do dia da sua
morte. Tinha sido uma morte serena, mas no derradeiro momento pode vislumbrar
nos seus olhos parados as lágrimas de dor por o deixar. E depois, como se não fossem
suficientes, ouviu-a proferir, num sussurro: Meu filho, pedirei por ti a Deus! Tinha
a certeza de que o pedido fora feito. Mas onde estava Deus? Um ruído arrastado
fê-lo ficar alerta. Havia alguém na penumbra, além dele. Alguém que se
deslocava como se não quisesse ser ouvido. Acaso tratar-se-ia daquela que o tentava à perdição?
Porque não lhe saía do pensamento?
Porque teimava em povoar-lhe os sonhos?
Ou seriam antes pesadelos?
Havia alturas em que àquele, maravilhoso, se contrapunha um outro lugar: de
chamas e tormento que o lançavam num frenesim de pavor. E, por mais que gritasse,
acabava sempre por ser levado por criaturas de asas negras, que o alçavam no ar
para o lançarem, momentos volvidos, no interior de um enorme caldeirão, no qual
ferviam todas as criaturas miseráveis. Como ele! O pânico assaltou-o. O
vulto avançava pela nave deserta e ele desejou que se tratasse de um irmão em
busca de recolhimento para orar. Um olhar mais atento fê-lo duvidar. O
movimento era fluido e ondulante e pela primeira vez teve um vislumbre que ia
ao encontro dos seus maiores receios. O Demónio parecia ter conseguido
insinuar-se no interior do Paraíso. E ele temeu!
Uma
vez mais, sentiu-se acometido pela dor da perda que se confundia com aquela
outra, física mas impalpável, e, incapaz de exercer sobre ela o seu domínio, a
sua mente viajou de novo até àquele fatídico dia em que a viu cair de cama,
para não mais se erguer, aquela que tanto lhe queria. Fora o dia mais triste da
sua vida, e revisitá-lo era sempre um calvário angustiante. Era como se parte
de si morresse com ela! Por isso, avistá-la agora ali a sorrir-lhe, como se
tudo o resto não tivesse passado de um pesadelo, encheu-lhe o coração de júbilo
e ele desejou abraçá-la, poder explicar-lhe que se em pouco tempo se tornara o
pajem do seu senhor, não fora por desobediência mas pela necessidade de
sobreviver, já que não lhe restara outra opção, após a sua morte. Depois da sua
partida, passara a contar apenas consigo próprio. E o mundo tornara-se, de
repente, um lugar inesperado e perigoso. Todavia, quando se aprestava a explicar-lhe
tudo isso, aquele anjo em que reconhecia as feições da mãe ergueu-se na bruma
da tarde e, depois de lhe acenar uma última vez, começou a afastar-se, lenta
mas inexoravelmente, até desaparecer por fim num ponto de luz, numa espécie de
estrela que ficou a brilhar no firmamento. Ainda gritou, esbracejando, mas
depois, incapaz de conter as emoções, sentiu as lágrimas a descerem-lhe pelo
rosto, as forças a faltarem-lhe nas pernas, e caiu por terra, sem ânimo nem
vontade para viver.
Sentiu
primeiro a dor, depois, a mão que o abanava acompanhada pela voz distante que
tentava arrancá-lo à inconsciência. Mas o mundo dos mortos era estranho, escuro
e irreal e aquela voz era decerto a do guardião dos portões do Céu. Ou seria do Inferno? Manteve-se
estoicamente afundado no limbo de irrealidade em que se encontrava, temendo
confrontar-se com a verdade. Rapaz... Quem
te fez isto?, insistiu a voz. Era quente e profunda. Abriu os olhos e
uma luz intensa perfurou-lhos, como um ferro em brasa. Estava às portas do
Inferno! Deus, porque me haveis recusado?,
não se absteve de pensar. Quem... quem sois?, balbuciou. A dor era enorme,
excruciante. Quem te fez isto?, insistiu a mesma voz, sem lhe responder. O meu
senhor..., furioso comigo…, respondeu, necessitado de piedade. Malditos.
O comentário genérico denotava à opinião de alguém que não temia a regra de um
senhor, talvez por não se submeter a nenhum ou, então, por lhe ser esquivo. Anda,
que vou levar-te até um local seguro... Sentiu então que era pegado ao colo e
acreditou que estava a ser carregado não por um demónio, mas por um anjo...,
pois os demónios não eram providos de tanta compaixão.
Pendente
da cintura, algo oscilava ao ritmo das passadas. Podia ouvir o som abafado de
uma qualquer ferramenta, batendo cavamente contra a perna do seu salvador.
Torcendo ligeiramente o pescoço, constatou que se tratava de um machado, cujo
cabo comprido deixava adivinhar a profissão de lenhador. Além disso, tanto
quanto lhe era possível verificar, não havia asas irrompendo dos ombros, como
seria suposto num anjo. Por último, o cheiro forte a suor, prova de alguém que
trabalhava arduamente, afastou qualquer dúvida que pudesse subsistir. Suspirou,
fechando os olhos, deixando-se levar sem protesto. Não era um anjo, nem era a
mãe, com quem julgara ter sonhado, mas um homem, e carrega-o tão carinhosamente
ao colo que o pequeno não pôde deixar de sentir que havia muito tempo não era
tratado com tanta piedade. Sentiu simultaneamente alívio e decepção. Se, por um
lado, verificava que estava vivo, por outro, via desfeita toda a expectativa de
se encontrar de novo em presença da mãe». In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das
Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT