O sonho de uma imperatriz, 1797
«Sentada na borda da parte de
trás de uma carroça que os camponeses usavam para transportar palha, Maria
Antonieta parece indiferente a tudo o que a rodeia. Como se os insultos que a multidão
lhe vai gritando, enquanto a conduzem à morte pelas ruas de Paris, fossem dirigidos
a outra pessoa. Quem poderia ter reconhecido naquela mulher, de touca e lábio inferior
saliente, dobrado num esgar de desprezo, a radiante arquiduquesa austríaca que tinha
chegado 23 anos antes a Versalhes para fazer a felicidade de França? À guilhotina!
A guilhotina!, gritou de súbito outra mulher. A raiva que lhe sai da boca é tão
intensa que a rainha não pode deixar de virar a cabeça e olhá-la. É possível que
esta cena tivesse cruzado a mente da imperatriz dona Maria Teresa no dia em que
deu à luz a arquiduquesa dona Leopoldina Habsburgo, em princípio destinada a
ser rainha de Portugal. Tantas vezes lhe tinham falado da morte da tia que não seria
estranho que até tivesse sonhado com ela. Não se sabe quem terá sido o primeiro
a contar-lha, talvez a sua mãe, a irmã favorita da dona Maria Antonieta.
Seja como for, naquela madrugada de
22 de Janeiro de 1797, a imperatriz
dona Maria Teresa não ouvia em seu redor os gritos da plebe de Paris, mas antes
os ruídos característicos de um quarto em que uma mulher está em trabalho de parto.
No seu caso, os aposentos de tectos altos e de portas douradas de uma ala do
palácio imperial de Viena. Nevava copiosamente nessa madrugada, e o silêncio da
praceta situada aos pés das janelas dos seus aposentos ainda não tinha sido quebrado
pelo repicar dos sinos da capela imperial a chamar para a primeira missa de domingo.
Estando prestes a dar à luz um novo
descendente do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, evocar a morte violenta
da rainha dona Maria Antonieta de França poderia ser interpretado como mau
agoiro. Sobretudo quando a parturiente nascera e fora criada em Nápoles, cidade
conhecida pelas crenças e superstições dos seus habitantes de todas as classes.
Assim sendo, se em algum momento dessa madrugada lhe tivesse passado pela mente
a imagem da tia enquanto era conduzida à guilhotina, dona Maria Teresa tê-la-ia
afastado rapidamente, preferindo recordar que, na Áustria, se considerava um
bom presságio que uma criança nascesse num domingo. Entretanto, o parteiro
imperial tentaria parecer seguro de si enquanto as nobres aias trocariam olhares
furibundos, disputando o privilégio de colocar mais uma almofada no leito da imperatriz.
Desde que o médico imperial lhe confirmara
que estava de novo grávida, talvez se tivesse colocado, em algum momento, a
velha pergunta: menino ou menina?
Embora soubesse, por experiência própria, que o destino das princesas reais
era, ao casarem-se, acabar quase sempre muito longe do local de nascimento,
dona Maria Teresa sempre desejara ter muitas filhas. Mas tudo isso mudara depois
de terem cortado a cabeça à sua tia. E, acima de tudo, desde que aqueles
franceses frívolos tinham decidido levar a sua Révolution a outros Estados da Europa. É provável que dona Maria Teresa
tivesse ouvido alguma vez a sua mãe, a mais inteligente das irmãs de dona Maria
Antonieta, dizer que na história da Europa não era raro que as rainhas pagassem
os erros políticos cometidos pelos respectivos esposos. Algo paradoxal, dado que
muitas vezes era através das mulheres que os homens alcançavam dimensão
histórica». In Marsilio Cassotti, Imperatriz D. Leopoldina, tradução de Sandra
Dolinsky, Manuscrito Editora, 2015, ISBN 978-989-881-803-4.
Cortesia de ManuscritoE/JDACT