«(…) Na verdade, o meu aparecimento
recente no ginásio dele não tinha nada que ver com uma transferência para outro
posto de trabalho, era mais uma viagem de negócios. Afinal de contas, eu estava
em Tóquio para tratar de um serviço. Quando o trabalho estivesse feito, ia-me
embora. Tinha feito algumas coisas para gerar animosidade contra a minha pessoa
quando ali morara e talvez os afectados ainda andassem à minha procura, mesmo depois
de me ter ausentado durante um ano, de modo que uma estada curta era o máximo que
me podia permitir sem abusar da sorte. O Tatsu entregara-me uma pasta sobre o yakuza um mês antes, quando me encontrara
e me convencera a aceitar a missão. Pelo conteúdo da pasta, eu teria concluído que
o alvo era apenas um capanga da máfia, mas sabia que devia ser mais do que isso,
visto que o Tatsu queria que fosse eliminado. Não lhe chegara a perguntar. Só queria
saber os pormenores que me ajudariam a aproximar-me do homem. O resto era irrelevante.
A pasta incluía o número de telefone
móvel do yakuza. Eu tinha passado essa
informação ao Harry que, sendo um hacker
compulsivo, há muito que tinha invadido os sistemas informáticos que controlam as
redes de comunicação móvel das três maiores operadoras telefónicas do Japão. Os
computadores dele andavam a monitorizar os movimentos do telefone móvel do yakuza na rede. Cada vez que o aparelho era
apanhado por uma torre que cobria a região em redor do ginásio o Harry mandava-me
uma mensagem para o pager. Hoje a mensagem
chegou pouco depois das oito da noite, quando eu estava a ler no meu quarto no
Hotel New Otani, em Akasaka-Mitsuke. Sabia que o ginásio fechava às oito,
portanto, se o yakuza estava lá a fazer
exercício fora de horas, era bem provável que se encontrasse sozinho. Era disso
que eu estava à espera.
O meu equipamento já estava arrumado
num saco e saí dali a poucos minutos. Apanhei um táxi ligeiramente afastado do hotel,
não querendo que o porteiro ouvisse, ou memorizasse, para onde eu ia e, passados
cinco minutos, apeei-me na esquina da Roppongi-dori com a Gaienhigashi-dori, em
Roppongi. Detestava ter de seguir um percurso tão directo, pois isso reduzia a possibilidade
de me assegurar de que não estava a ser seguido, mas tinha muito pouco tempo para
resolver a situação de acordo com o planeado e decidi que valia a pena correr esse
risco. Há mais de um mês que andava a vigiar o yakuza e conhecia as rotinas dele. Descobrira que gostava de variar
o horário das sessões de exercício, ora aparecendo no ginásio de manhã cedo, ora
aparecendo à noite. Provavelmente partia do princípio que a imprevisibilidade resultante
o tornava mais difícil de atingir. Em parte, tinha razão. A imprevisibilidade é
essencial para se ser um alvo difícil mas o conceito aplica-se tanto à hora como
ao local. Meias medidas como as deste tipo talvez o protegessem de algumas pessoas
em algumas alturas, mas não o protegeriam durante muito tempo de alguém como eu.
É estranho que as pessoas consigam
adoptar medidas de segurança adequadas, até mesmo fortes em determinados aspectos,
enquanto se deixam vulneráveis noutros. É como trancar a porta de casa com duas
voltas da chave e deixar as janelas escancaradas. Às vezes esse fenómeno deve-se
ao medo. Não tanto o medo das exigências como o medo das consequências da vida de
alvo difícil. Protecção a sério exige a aniquilação de todos os laços sociais, laços
que, para a maioria das pessoas, são tão necessários como o oxigénio. Obriga a que
se desista dos amigos, da família e do amor. Passeia-se pelo mundo como um fantasma,
desligado dos seres vivos que o rodeiam. Caso se morra, por exemplo, num acidente
de autocarro, acaba-se enterrado num cemitério municipal obscuro, um anónimo como
os outros, sem flores, sem enlutados, ora, sem que a perda doa a quem quer que seja.
É natural, e provavelmente até desejável, recear-se fudo isso.
Noutras alturas verifica-se uma
variedade de negação. A adopção de percursos sinuosos, as medidas de segurança extensivas
e o diálogo interno constituído por: … se
eu estivesse a tentar caçar-me, como faria?, exigem uma aceitação profunda da
noção de que há alguém por aí que tem não só motivos, como também meios para
abreviar a nossa permanência na Terra. Essa, noção é inatamente incómoda para a
psique humana, de tal modo que produz
uma enorme tensão, até nos soldados em combate. Há muitos tipos que, da primeira
vez que são alvo de fogo à queima-roupa, entram em estado de choque. Porque é que ele me quer matar a mim?, perguntam
para com os seus botões. Que mal lhe fiz eu?
Pense nisso. Alguma vez espreitou para dentro do armário ou para debaixo da cama,
quando está sozinho em casa, para garantir que não há ali nenhum intruso escondido?
Agora, se sinceramente acreditasse que o gorro está à coca num desses sítios, teria
a mesma atitude que tem hoje? Claro que não. No entanto, é mais confortável
acreditar no perigo apenas em termos abstractos e reagir com uma certa falta de
convicção. Trata-se de uma forma de negação.
Por
fim, como é evidente, também há a preguiça. Quem é que tem tempo e energia para
inspeccionar o carro da família, à procura de engenhos explosivos artesanais,
antes de cada viagem que faz? Quem é que se pode dar ao luxo de perder duas horas
num percurso sinuoso para chegar a um sítio onde poderia ter chegado em dez minutos?
Quem é que quer desistir de se sentar num restaurante ou num bar porque os únicos
lugares vagos estão virados para a parede, e não para a entrada? São perguntas
retóricas, mas sei qual seria a resposta do Crazy Jake: … os vivos; e aqueles que têm intenção de continuar assim. E assim se
chega a uma racionalização fácil que, com certeza, é conhecida de muita gente que
já matou, como eu: … se ele realmente quisesse
viver, reza a racionalização, … eu não
teria conseguido apanhá-lo; ele não se teria permitido aquela fraqueza que o
entalou». In Barry Eisler, O Quinto Mandamento, 2004, tradução de Luís Coimbra,
Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-6337-304-7.
Cortesia
de SEmergência/JDACT