sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Imitação da Felicidade. Urbano Tavares Rodrigues. «Mas estas horas de maior calor são chatas. À noite ainda há a televisão, em quase todos os cafés. De tarde, estão praticamente vazios, a não ser o Nacional, que sempre tem mais animação por causa dos bilhares»

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Maio
«(…) No primeiro domingo, dispensaram-me. Pois bem, senti a falta daquele convívio diferente. Não era só, afinal, o dinheiro que me davam a ganhar era a companhia. Uma variante. Nesta terra a gente aborrece-se. E ainda a missa ia a santos… não fui ao estádio ver jogar o Alhandra contra o portimonense, com a intenção de poupar dinheiro para lhes oferecer um almoço, mesmo que fosse modesto. Queria compreender… e apetecia-me, ao menos uma vez, ser eu a convidar. Como tinha combinado levá-las a Olhão, para lhes mostrar as açoteias, talvez aí, no porto; gostam é de petiscos típicos e de tabernas…
Quando chega o Verão, dir-se-ia que esta terra só tem lojas com bóias e sacos de praia. Estamos a viver dos turistas, cada vez mais, e porque não?, mas não havíamos de ficar assim de gatas, ou então desconfiados, diante deles; temos de nos habituar. A classe de gente que mais os estranha, aqui na província, são os remediados, todos vestidos de preto, desde o chapéu à biqueira dos sapatos; e por dentro também andam de luto. A Marta entende-se com eles, é capaz de fazer visitas ao domingo, eu não. Mas estas horas de maior calor são chatas. À noite ainda há a televisão, em quase todos os cafés. De tarde, estão praticamente vazios, a não ser o Nacional, que sempre tem mais animação por causa dos bilhares; cinco mesas que não chegam para a rapaziada fazer o gosto ao dedo. No entanto, o café propriamente dito fica também às moscas. Há ventoinhas no tecto, mas não trabalham. O mudo vai de um a outro dos fregueses, já bêbado, a tropeçar, pedindo tabaco por gestos. Sempre encontra quem lhe dê algum cigarrito e quem lho acenda.
As senhoras, quando adrega á ir a mulher de algum amanuense ou caixeiro viajante, desviam os olhos dele, porque traz a cara tão suja e tão desavergonhada que lhes mete nojo; e às vezes, se lhe recusam o que pede, faz manguitos, aos impos, e chega a desabotoar a braguilha. Já há muito que devia estar no manicómio, diz o cauteleiro, a quem o mudo estorva no negócio, por maçar as pessoas até ao sabugo das unhas, antes de ele, por sua vez, as aporrinhar. Nunca pude entender onde é que este homenzinho limpo e engravatado, que lembra um pato na madeira de andar, com aquela grande pasta debaixo do braço, vai buscar tanta lábia, pior do que um padres desses novos que vêm de fora pela Páscoa, com o sermão todo empinado e muitos gestos na ponta dos dedos». In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação da Felicidade, Publicações Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX, 1988.

Cortesia de PEA/JDACT