sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A Primeira Mestiça. Álvaro Vargas Llosa. «… da distribuição de índios e das investiduras em cargos públicos nos cabidos das cidades que fundava. Mas Almagro queria mais! Queria... queria ser Pizarro! A corte defraudara-o ao negar-lhe o governo do território que ambicionara nos primeiros tempos da Conquista…»

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O cerco a Lima
«(…) Francisco Pizarro reservou para si quatro solares, nos quais instalou a sua própria casa e o centro nevrálgico do poder. Mandou plantar, para si, um pomar com um reservatório de água de ladrilho e cal e fazer um telheiro de lata. Entregou dois solares vizinhos ao seu irmão Hernando e cedeu ao seu meio-irmão Martín Alcántara um solar que fazia esquina com a praça. Também reservou espaço para os futuros conventos de La Merced, Santo Domingo e São Francisco. Foi ele próprio quem assentou as canas, o colmo, a madeira e a pedra da modesta igreja matriz, cuja construção ordenou imediatamente, dedicando-a a Nossa Senhora da Assunção, como era norma da vertente evangelizadora da Conquista. Com o passar do tempo, as ruas que irradiavam da praça foram adquirindo personalidade e nomes que também designavam ofícios. Assim, havia a rua dos mercadores, a dos adeleiros e a das mantas.
No porto, a alguma distância do centro, ergueram-se armazéns para as mercadorias que o mar prometia. O comércio externo era indispensável ao novo mundo, simultaneamente transplante e invenção, a que aspiravam. A enseada ou baía que formava o porto era visível dos solares da praça principal, o que reconfortava Pizarro e os seus, pois isso lembrava-lhes de que, ao contrário dos vales andinos em que tinham defrontado os Incas nos meses anteriores, ali dispunham de uma via de fuga, caso fossem cercados, e também tinham a possibilidade de se reabastecerem e rearmarem, no caso de serem necessários reforços humanos e mecânicos. O mar era também uma via de comunicação com os territórios do Norte; uma rota mais eficiente do que o caminho dos Incas, essa serpente que ziguezagueava pelo interior, contornando vales e desfiladeiros, com todo o tipo de pontos de observação naturais e o perigo permanente de se depararem com inimigos emboscados. Quando desceu a Lima, Francisca ainda não tinha idade para ver as coisas mas para as cheirar, pelo que o seu primeiro encontro com a capital ficou marcado pelo odor salgado do Pacífico, transportado pela humidade do Verão. Esta é a tua nova casa, arvelita disse Pizarro afectuosamente a dona Inés Huaylas, que, habituada, por herança cultural, a venerar determinados elementos da Natureza, não achava demasiado estranho o seu marido e senhor tratá-la pelo diminutivo do nome de uma ave das montanhas da Estremadura.
Pizarro podia ser analfabeto e desprovido do refinamento renascentista, mas os seus reflexos defensivos denotavam a sofisticação própria da capacidade para detectar ameaças. E Diego Almagro, o seu grande companheiro na Conquista, com quem conseguira conquistar um império com mais de um milhão de quilómetros quadrados, era uma ameaça! O Conquistador dedicava boa parte do seu tempo à administração dos apetites dos seus lugares-tenentes, nomeadamente através da divisão do ouro e da prata, da atribuição de comendas, da distribuição de índios e das investiduras em cargos públicos nos cabidos das cidades que fundava. Mas Almagro queria mais! Queria... queria ser Pizarro! A corte defraudara-o ao negar-lhe o governo do território que ambicionara nos primeiros tempos da Conquista, para não se sentir inferiorizado em relação a Pizarro, mas, no início de 1535, chegou a notícia de que o rei decidira conceder-lhe o poder sobre os territórios do Sul, contíguos aos domínios do seu companheiro e rival. Os limites exactos dos territórios sob a sua alçada foram-se esfumando no caminho entre a Península Ibérica e o Peru, pelo que, em vez de diminuir a tensão entre ambos, a boa nova acabou por a estimular. Ao enviar Almagro ao Cuzco, que estava sob o controlo dos seus irmãos Juan e Gonzalo Pizarro, o Conquistador acabou por fazer aumentar, sem querer, as ambições do seu rival. É que era justamente Cuzco, a cidade emblemática de Tahuantinsuyo, que ele cobiçava. E os seus apaniguados, aproveitando a inexactidão das fronteiras entre os dois territórios, sussurravam-lhe dia e noite: o Cuzco pertence à tua jurisdição! Era inevitável que a sua chegada à dita cidade o colocasse em rota de colisão com os dois insolentes jovens de vinte anos, que dela haviam desfrutado como infantes durante aqueles meses de ausência do Conquistador». In Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT