O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Rui Pina, que às
vezes sabia destilar com reserva e inteligência o seu veneno, dizia só Deus o sabe...,
mas nesta frase podem conter-se milhentas dúvidas e interrogações e o que é
certo é que passou a faltar ao Rei e à família do Infante a única pessoa em
Portugal capaz de levar a bom termo a vingança contra os seus ferozes opositores.
La ravia de la cruel muerte, como escrevia
o irmão Pedro, levara-a para as sombras implacáveis do esquecimento. Esse dia 2
de Dezembro selava, em certa medida, um capítulo na história do Reino. Afonso chorou como só fazem as
crianças, nos ombros dos validos, das donas, do irmão querido, aquele estouvado
e louco Fernando que também o idolatrava. Na realidade o pobre rei, pela sua
extrema juventude, ele que sofrera já o afastamento da mãe, uma dor que fora colmatada
pelo amor dos circundantes, dos tios, da tia de Urgel, de todos, e era muito pequeno então, não conhecia o sabor
de uma dor incomensurável, aquela espécie de grito interior que nos rasga as
entranhas, nos põe a sangrar por dentro e parece nunca mais acabar. A última noite
do mundo é sempre essa, a nossa, quando a morte se perfila no horizonte, se
aproxima depois de nós e nos envolve até à eternidade, quer seja o nosso fim
individual, quer o do ser que amamos e perdemos para sempre.
Muitas vezes pensei
nesse pobre rei, infeliz desde a tenra infância e bom homem pela sua fraqueza
endémica, ao perder, anos mais tarde, a única mulher que amei em toda a minha
vida e recordei nesse momento a sua dor que eu conheci bem, e o que escrevi,
algures, depois de abraçar o seu corpo rígido: … que poema é este que eu cantei dentro de mim em segredo e depois
rebenta como um fogo de pólvora com a tua morte? Que poema é este, meu amor, tu
que nada já és senão a imagem que, antes de te conhecer, eu fiz de ti, como se
a morte te beijasse com a vida os teus lábios frios? O rei, no entanto,
tinha deveres a cumprir, os da casa e os do Estado. Vivia num país do qual era
a cabeça, que se achava absorvido, havia já meio século, por interesses
universais, pois que a política de expansão para ocidente e para o Sul,
iniciada no tempo do avô, previa, como agora se sabe, a criação de um Império.
Os mitos dos livros antigos, de Geografia e viagens, iam caindo, embora ainda
subsistam muitos. Pompónio Mela, Solino, Ptolomeu (que só em meu tempo foi lido
porque vertido para o Latim), Marciano Capella, Dicuilus, Honório, as traduções
dos árabes e o Livro das Maravilhas eram leitura apaixonada da gente da corte,
embora nem todos os tivessem lido. Sei que o próprio Infante Henrique não leu
todos. Mas eu li grande parte, pois eram feitas cópias na oficina de meu pai e,
depois, conheci a grande biblioteca de frei Jerónimo e de meu tio sacerdote. Os
marinheiros, porque corriam versões várias e até obliteradas dos vários De
imagine Mundi, receavam as águas ferventes do mar oceano para lá da
África, embora a ideia seja postulada, ou o tenha sido até João II, pelos árabes,
a quem convinham muitas das efabulações dos antigos.
Afonso tinha a missão de Estado a cumprir e a da educação dos
filhos. A política obrigara-o a perder a irmã dona Leonor, que partira para a casa
dos Habsburgos, perdera a mãe, perdera agora a mulher que, por sua vez, perdera
também o afecto da prima com quem compartilhara o seu amor pela leitura, os
jogos e as longas conversas como duas irmãs e agora partira também. Os jovens príncipes
teriam de receber uma educação condigna. Foram entregues aos cuidados de dona
Beatriz Menezes e ficaram a habitar o paço que pertencia ao velho duque de
Bragança, a par de S. Cristóvão. Afonso,
que tivera como mestre Mateus Pisano, exigia também para seus filhos os
melhores mestres e foi melhorando, com o decorrer do tempo, a sua valiosa
biblioteca.
Enquanto o rei sonhava com a expulsão dos infiéis do Norte de África, o
principesinho crescia e o mundo continuava a reger-se pelas imutáveis
leis do destino. Entre 1456 e Novembro
de 1460, desde a nomeação de Rodrigo
Borja para cardeal até à morte do tio Henrique, com os seus secos sessenta e
quatro anos, em Sagres, muita coisa aconteceu e, depois, por aí fora... Os
filhos de Pedro foram também caindo, um por um, como se da árvore seca que foi
o corpo exangue do pai em Alfarrobeira os frutos estiolassem e acabassem por
cair no pó». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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