Um pai
ambicioso. O infante Fernando, irmão do rei Afonso V
«(…) O autor ou autores dos Apontamentos históricos, dão no
entanto um timing diferente para este
acordo: verificou-se logo a seguir à expedição em que o infante Fernando
conquistou Anafé com autorização do irmão, em 1468. Reza o texto: … neste
tempo depois da vinda do infante Fernando acabou ele de firmarde tudo com el
rei seu irmão o casamento da senhora dona Leonor sua filha com o príncipe João;
e assim consertou outro da senhora dona Isabel também sua filha legítima com o
conde de Guimarães e el rei por mais enobrecimento deste casamento o fez duque
da mesma vila de Guimarães sendo ainda vivo o duque de Bragança seu pai por
cuja morte sucedeu o título de dois ducados e etc. Aos 10 anos, estava já a
nossa rainha prometida ao herdeiro do trono, e sua irmã ao futuro duque de
Bragança. Filhas arrumadas, portanto. Com uma importante consequência, que
devemos desde já assinalar. Vistas as coisas pelo lado do futuro João II, agora
comprometido, estavam cortadas as hipóteses de fazer outros arranjos
matrimoniais. Com efeito, poucos anos antes, em 1465, a irmã de ambos, Joana, casada com o rei de Castela Henrique IV,
viera pedir ajuda contra os nobres que se levantavam contra o marido, tendo
falado do casamento tanto do rei viúvo como do seu herdeiro. Os casamentos não
foram por diante, mas as noivas em perspectiva eram a sua filha muito pequena,
Joana, e Isabel, meia-irmã do rei, e depois conhecida por a Católica. Estes planos deviam ser do conhecimento do próprio
duque de Viseu, que assim punha termo a quaisquer projectos, interpondo a sua
filha entre Afonso V e a família real castelhana, O que terá consequências
futuras.
Os sucessores do infante Fernando,
nomeadamente a sua viúva, tratariam dos detalhes do negócio com o seu
irmão Afonso V. A outra filha, Isabel, nascida depois de dona Leonor, viria a
casar pela mesma altura. Uma sequência que, de resto, não tinha nada de
aleatório: nos jogos das uniões dinásticas, a filha mais velha, a não ser que
tivesse algum defeito, era sempre dada ao noivo mais importante. E é quase tudo
o que se pode dizer acerca do pai e da filha, e apenas podemos especular sobre
as recordações que esta última teve do pai na sua idade adulta. Recordá-lo-ia
ao lado da mãe, em Beja, preparando a criação do Mosteiro da Conceição? Ou como
cavaleiro, aprontando expedições a África? Ou como governador das ordens
militares de Santiago e de Cristo? Ou, pelo contrário, tinha dele uma imagem
ficcionada, alterada pelas recordações e narrativas dos outros? Em todo o caso,
relembre-se que, à semelhança de muitas crianças não só das famílias reais como
das outras, dona Leonor ficou sem pai muito cedo, e não deixou de ser, embora
rica e bem nascida, uma órfã. Numa época em que a esperança de vida era
curta e a mortalidade elevada, ficar sem pais durante a infância era um destino
relativamente comum.
Relembre-se que esse estatuto era
dado a todas as crianças cujo pai, natural detentor do poder paternal, tinha
morrido ou não existia, o que fazia com que os que tivessem o pai vivo mas não
a mãe não fossem considerados órfãos. Por exemplo, o príncipe João (futuro João
II), embora sem mãe desde os sete meses, não era um órfão à face da lei. Dona
Leonor foi-o, mas uma órfã para quem o pai teve tempo de cumprir o seu dever antes
de morrer: arranjar-lhe um casamento vantajoso. Mesmo sem sabermos o que a
figura paterna representou para a filha, adivinhamos o que o tio Fernando pode
ter significado para João II: um reino empobrecido, um património real
secundário face à soma do dos dois ducados de Bragança e Viseu. Para João II,
arriscamos, a família rica, seria a
da mulher e não a dele. E a mãe, dona Beatriz? E os irmãos de Leonor?
Uma mãe eficiente: dona Beatriz, infanta
e neta do duque de Bragança
 mãe, tinha também reis entre os
seus antepassados, sendo neta pela via paterna e materna do fundador da
dinastia, o da Boa Memória, João I (1357-1385-1433). Como dissemos,
era filha de um dos seus filhos legítimos, infante João, que tinha por sua vez
casado com a meia-prima dona Isabel, filha de Afonso, 1.º duque de Bragança,
bastardo de João I, e portanto também sua neta por via ilegítima. Casou com o
infante Fernando em 1447, mas o seu
contrato foi assinado dois anos antes. O seu enxoval é conhecido e encontra-se
publicado: … jóias e corregimentos, que recebeu de sua mãe, dona Isabel de
Bragança. Às mães competia zelar para que as filhas levassem para o casamento
todos os objectos necessários ao corpo e casa. O enxoval de dona Beatriz é
elucidativo sob vários pontos de vista, e necessita de um estudo que o enquadre
na história da cultura material tardo-medieval, comparando-o com o de
outras noivas de estirpe régia». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a
Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de
Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.
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