domingo, 30 de agosto de 2015

O Pintor de Sombras Esteban Martin. «O melhor do local em que vivia era a magnífica praça de touros ‘El Torín’, a primeira de Barcelona, concebida pelo arquitecto Josep Fontseré. A praça situava-se em Barceloneta»

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«No meu caso, um quadro é um somatório de destruições». In Pablo Picasso

Pablo Picasso. El Torín
Barcelona, finais de Setembro de 1895
«Embarcaram com destino a Barcelona no dia 13 de Setembro no Cabo Roca, um pequeno cargueiro, depois de o seu pai solicitar a transferência e de passarem as férias em Málaga. O seu tio Salvador, detentor do cargo de director de sanidade do porto de Málaga, conseguira obter-lhes um desconto considerável no preço das passagens, facto que, sem dúvida, encorajou o pai a ultrapassar o receio que sempre sentira das viagens por mar. A travessia foi demorada e aborrecida, pois o barco navegou junto à costa até Barcelona, fazendo escalas nos portos de Cartagena, Alicante e Valência. Parecia que a viagem jamais chegaria ao fim. Para se entreter durante o percurso Pablo trabalhava em pequenas tábuas, pintando e desenhando cenas marítimas. José observava o filho enquanto este se entregava ao trabalho. Posso ver? Pablo mostrou-lhe a tábua. O pai José observou-a em silêncio, enquanto os seus olhos se iluminavam. O colorido do mar é bom. É um bom estudo, mas eu focar-me-ia mais no paredão e nos barcos atracados, disse, devolvendo-lhe a tábua.
Pablo centrou-se no paredão, tal como lhe havia instruído o pai, e pintou os barcos com grande detalhe. Já está, pai. Magnífico. Esperemos que esta viagem termine em breve. Começa a ser um pouco aborrecida, disse-lhe o pai, devolvendo-lhe o trabalho. Chegando a Barcelona, alojaram-se provisoriamente num pequeno quarto na Rua Cristina, muito perto do porto em Barceloneta e a quatro passos do edifício da Llotja, que albergava a Escola de Belas-Artes, onde José daria aulas e onde matriculara o filho no final de Setembro. Barcelona fascinou o rapaz. Era uma cidade grande, inovadora e industrial, com mais de meio milhão de habitantes e em plena transformação, com edifícios modernos e avenidas com árvores e iluminação. O melhor do local em que vivia era a magnífica praça de touros El Torín, a primeira de Barcelona, concebida pelo arquitecto Josep Fontseré. A praça situava-se em Barceloneta, no bairro de Ginebra, e visitava-a com o pai em muitas tardes para ver as corridas com um caderno na mão. Naquela praça, um ano depois da sua inauguração, eclodira a revolta que se estendeu pela cidade e que resultou na queima de conventos. O sucedido foi eternizado na poesia popular:

El dia de Sant Jaume de l’any trenta-cinc
hi va haver gran broma dintre del Torín;
van sortir set toros tots van ser dolents,
això va ser la causa de cremar els convents.

A praça foi fechada e, como represália, houve planos para a converter em matadouro. As corridas continuariam a realizar-se na Praça do Borne e, para ampliar a oferta taurina, idealizou-se a Praça do Rei. Mas a afición da cidade de Barcelona pela tauromaquia vinha de muito longe e ninguém se atreveu a converter El Torín num matadouro. Pablo entusiasmava-se com o bairro e percorria-o esboçando tudo o que via: as mulheres dos pescadores remendando as redes à porta das suas casas, estendendo a roupa ou vendendo peixe fresco; os miúdos brincando no adro da igreja de San Miguel del Puerto; os pescadores descarregando as caixas contendo as capturas do dia, e os banhistas, que vinham celebrar o solstício de Verão banhando-se nus nos balneários Soler. Até mesmo Amadeu I, de visita à cidade para as festas de La Merced, em 1871, acabou nu e banhando-se em pelota. Transformara-se assim numa tradição monárquica, já que a rainha Isabel II, em 1840 e pelo menos em três outras ocasiões, se deslocara à praia de Barceloneta para se submeter a banhos de ondulação por recomendação médica, com a finalidade de curar um doloroso eczema.
Esta tarde iremos ao bairro de Ostia para ver os touros, disse-lhe o seu pai numa ocasião. A expressão chocou o rapaz, levando em conta as suas crenças religiosas e a pureza da sua linguagem. A Barceloneta, filho. Também lhe chamam assim porque, ao que parece, quando fundaram o bairro existia um estabelecimento propriedade de um italiano, que na fachada mandou pôr um letreiro representando a sua terra natal, a cidade de Ostia. Aquela gente maravilhava Pablo nos seus passeios. Como todas as gente do mar, viviam mais na rua do que em casa, tomando ar fresco, jantando. Viviam em casas pequenas, muitas apenas com piso térreo. O rapaz depressa deixou de ser um estranho. Onde te metes, Pablo? Passas todo o dia por aí, com os teus amigos. Estive no paredão, na praia de Barceloneta, nos alpendres, no molhe de pesca, no bairro antigo...
Não pode ser, Pablo. Estás a negligenciar os estudos, repreendeu o seu pai com voz grave. Olhe o que lhe trago, pai, disse, mostrando-lhe um caderno. José começou a folhear as páginas lentamente, observando os desenhos que preenchiam o caderno. O rapaz tinha boa mão para o esboço rápido, para captar uma grande variedade de tipos humanos, de profissões e de ambientes. Fizeste tudo isto esta semana? Não, pai. Fi-los hoje. Hoje?... A todos? Sim, pai. Estão muito bem, filho. Mas preferia que não faltasses às aulas. Aborrecem-me, pai. Mas vou a todas. Sabe-o bem. Sim, sobretudo às de desenho e modelo. Mas, o que me dizes das aulas de história da arte e de estética?» In Esteban Martin, O Pintor de Sombras, 2008, tradução de Renato Carreira, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-637-310-8.

Cortesia SEmergência/JDACT