De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) A história de uma família
que se confunde com a história de um povo. Estarão vocês, Javier e Raquel, a
escrever os últimos capítulos da história da vossa família? Sim, da vossa
família, porque a do vosso povo continuará! Javier, tal como eu, recusa a ideia
de este ser o último capítulo. Tens que ser forte para sobreviveres contra
todas as probabilidades e dar continuidade a tudo, para que a luta da nossa
família não tenha sido em vão. A sobrevivência não se esgota no pulsar do teu
coração; passa por enraizar e dar continuidade a tudo; passa por acreditar; por
seres forte e vencer. Eu, tal como os primeiros, sou uma vencedora porque
alimentei e segui a minha fé. Não tenho a lucidez suficiente para procurar as
melhores palavras. Vais receber algo deturpado mas cabe-te a ti, um dia,
interpretar, descobrir o resto e dar continuidade. As palavras da nossa avó
compõem o trecho cuja melodia escuto todos os dias, não pela minha deliberação,
mas sim pela rudeza da tatuagem que ficou gravada na minha mente. Isso faz com
que tudo pareça ter sido contado ontem...»
Abraça Raquel, Javier. Tudo
aquilo que estivemos a ver ainda hoje, Javier, e que rapidamente está a
transformar-se em cinza, é o que a nossa avó relata na história. É a mesma
gruta que a nossa bisavó percorreu que nós também percorremos. Já, não resta
nada para além daquilo que estamos a ver. O que é mais doloroso são os corpos
dos nossos pais e da nossa avó carbonizados aqui bem perto e diante dos nossos
olhos. O fumo desaparece no ar, o cheiro é acre e desagradável, mas nada
podemos fazer. Não nos podemos denunciar para não seguires o mesmo caminho. É
por ti, porque eu já iniciei a marcha; já entrei no caminho sem retorno; desde
que não me deixes sozinha sentir-me-ei bem, mas tu, por favor, não te
denuncies. Restamos nós, mas eu pouco mais estou a fazer do que tentar, sem
sucesso, esticar o tempo. Neste momento sou o espólio de várias bibliotecas que
ainda ardem. Espero que tenhas aproveitado tudo que esteve ao teu alcance e...
Tenho medo. Abraça-me forte e canta a mesma canção que eu cantava para ti todas
as noites. Sei que me abraças, mas não sinto o aperto dos teus braços. No
entanto, vejo a estrela da canção e sinto-me levitar... Estás entregue à tua
sorte, mano.
Num
remoinho de acontecimentos vi a estrutura daquilo que foi a minha casa desabar
e os destroços a caírem na nossa direcção. Abandonei o corpo da minha irmã numa
fuga aparatosa; dei uma valente topada, caí e rebolei, mas o instinto de
sobrevivência sobrepôs-se às dores. Estonteado agachei-me debaixo de uma
oliveira e guarneci as minhas costas. Permaneci aí com um olhar vazio em
direcção à fúria das chamas crepitantes laranjas e azuis, desenrolando-se em
direcção ao céu, e os meus olhos acompanhavam a sua dança como se procurasse a neshama
dos meus. Permaneci aí durante horas, a reconstituir o último instante da minha
família, a minha avó a dar ordens de retirada e o meu pai a precipitar-se para
a porta, O meu vazio ficou assim preenchido, até que tudo o que restava da
minha casa não era mais do que um frígido silêncio. A minha própria respiração
passou a ser um vendaval ruidoso capaz de me denunciar. Tornou-se insuportável
e sentia que aquele local era perigoso». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT