segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Estalagem dos Assombros. Seomara Veiga Ferreira. «Aragão, limitada por ricas províncias, mas acidentada, montanhosa, onde, no Norte, furam os céus os montes Perdido, Aneto e o de La Madaleta. A oeste e sudoeste, o Moncaya»

jdact

«(…) A memória é uma doença também, pois vai crescendo mesmo contra nossa vontade. Quando naquele dia do regresso, a 13 de Setembro (e isto são restos do relato que dona Isabel me foi fazendo, já eu mulher e casada), o tempo alterou-se. Sabeis, no Norte, como é. De repente neblina, chuva, frio, mesmo em pleno Verão. Bispos, fidalgos, todo o pessoal se aconchegou na fila de vinte carroças no regresso a Trancoso. Recordo sobretudo o mordomo-mor, senhor de Albuquerque, todo resguardado no seu tabardo espesso de aguadeiro, grande demais para ele, chamar el-rei e propor-lhe outra via, mais curta, a velha estrada de lajes romanas, já com mau piso, para fugirmos à trovoada que se avizinhava... Com a precisão de um ourives, de tudo o que me ficou na memória antes de adormecer, recordo o fulgor das pedras de prata, cristal e calcedónia que ornamentavam os botões da veste de el-rei e a sua bolsa presa à cinta, sobre o saio. El-rei adoptava o alfrês ornamentado, a pedras, e o ouro sobre o seu corpo. Dona Isabel, sempre resguardada e simples, poucas jóias levava. Ó minha dona Doce, não sei que almadraque o bruto do estalajadeiro nos colocou sobre as tábuas desta cama que os percevejos roem e onde se passeiam, pois que tenho as costas tao doridas, como se as tivessem fustigado! E de resto, onde ia o pobre homem buscar seis libras para comprar um almadraque digno de uma Rainha?
Pois bem, voltemos à história. Meu sogro festejava a paz e dentro de pouco tempo, em Outubro, o seu trigésimo sexto aniversário. E era rei há, dezoito anos, após a morte do pai. E que vida cheia já tivera, vida onde eu me ia integrar como uma peça articulada numa máquina construída por gigantes! Tive a sorte de receber por mãe adoptiva uma mulher de carisma, santa e bela, que tinha uma ascendência tão antiga como muitas gerações deste nosso mundo. A sua estirpe provinha de santos, reis, imperadores e homens e mulheres cuja santidade era de grandeza espiritual inequívoca. Nascera em Aragão, de onde trouxe, mais tarde, um irmão, Pedro, filho ilegítimo mas de grande coração e um dos seus mais fiéis amigos. Aragão, limitada por ricas províncias, mas acidentada, montanhosa, onde, no Norte, furam os céus os montes Perdido, Aneto e o de La Madaleta. A oeste e sudoeste, o Moncaya. Isto contava ela, porque do resto já, não me recordo. Região rica em gado com terras de regadio, e contribuiu a terra da minha santa mãe para a reconquista aos alarves e brutos bárbaros da moirama.
Dona Isabel nasceu em Aragão, como sabeis, neta do Conquistador, Jaime, e de dona Violante, senhora da mais alta estirpe. Foi nesse tempo que se conquistaram as ilhas Maiorcas e os Reinos de Múrcia e Valência. A mãe de minha amada sogra era irmã, vede que felicidade e como os céus são propícios às grandes almas! da santa Isabel da Hungria. Talvez os seus cabelos louros e a sua tez branca viessem do sangue germânico, dos Hoenstaufen, porque o pai, Pedro III de Aragão, era casado com dona Constança dessa família..., filha do rei da Sicília, e neta de Frederico II da Alemanha... Ah, minha querida, deixemos esses pormenores que o tempo acaba por apagar e só nos velhos alfarrábios deixam o seu traço obscuro! Mas orgulho-me, que Deus me perdoe, de os meus filhos poderem gabar-se, coisa que não fazem de resto, mas se quisessem..., dessa augusta ancestralidade. Dona Isabel de Aragão, a Santa, a mulher que fez de Dinis I o rei que foi... Estamos sós e vós conheceis os factos. Bem escreveu ele um dia, num dos seus arroubos de sinceridade, porque, apesar de mau marido e mulherengo, nunca a deixou de querer e amar, aquele poema; como era? Esperai, que me vem à memória;

«Pois que Deus vos fez, Senhora,
fazer do bem sempre o melhor
e dele ser tão sabedora».

Agora o resto, deixai-me pensar... A minha memória, a minha memória...

«E pois sabedes entender
sempre o melhor e bem escolher,
verdade aos quero dizer».

In Seomara Veiga Ferreira, Inês de Castro, A Estalagem dos Assombros, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3716-8.

Cortesia de Presença/JDACT