Sara
«(…) O silêncio
desta masmorra encontra-se repleto de frémitos, de barulhos de ferros e de
gritos longínquos. Transida de medo, passas as tuas noites com os ouvidos
alerta, sempre atenta aos passos dos guardas, pois a qualquer hora, nas suas
incursões nocturnas, poderão vir buscar-te. Sabes que as culpas do teu sangue
são mais do que suficientes para que sejas condenada. Renunciaste há muito a
confiar de viva voz os sentimentos da tua fé, uma privação que te obrigou a
mergulhar fundo nos contornos da falsidade. Passaste a tua vida ao lado de um
distinto fidalgo, cumpriste todos os ritos enganadores dos cristãos, se bem que
em segredo repudiasses as mentiras dos teus lábios. Do teu libelo acusatório
devem constar os delitos heréticos do costume e, por causa deles, talvez vejas
promulgada uma sentença que apenas te permitirá sair desta cela de mãos atadas.
Avançando em auto-de-fé, por entre a chacota da multidão, terás como destino
unir o teu corpo ao implacável ardor das chamas. Mas nem isso já te
atormenta... O teu maior receio é o de não teres força para morrer pela honra
e, antes de darem os teus ossos aos cães, confessares com mentira as verdades
que eles pretendem ouvir. Naqueles interrogatórios reina uma tenebrosa
irrealidade, na qual as perguntas nunca encaixam nas respostas nem a verdade se
distingue da falsidade. Não existindo maneira de te precaveres contra o teu
corpo, sabendo-te refém da tua carne, através da qual talvez venhas a sofrer os
horrores da tortura, não podes sentir-te segura de que, em presença dos
carrascos, te consigas manter fiel ao Eterno. Neste mundo de sombras, só a
ferocidade daqueles que executam as leis é pura.
Beatriz Vaz, a
tua companheira da cela ao lado, denunciou todos os nomes de que se lembrou,
antes mesmo de lhe aplicarem qualquer suplício. Mesmo assim, não adivinhou
aqueles que a teriam visto fazer o jejum do Kippur
e o jejum grande do mês de Setembro. Muito ela te aconselhou a seguires os seus
passos na confissão. Devias, dizia-te ela, baixar os braços, avisou-te para te
persignares perante o inevitável, instou-te à resignação e a percorreres as
tuas terras e as vizinhas e, se tal não bastasse, todo o reino, para
denunciares. Só deste modo, advertiu-te, parecendo assaz avisada, te poderias
salvar. Beatriz deitou a perder todos os parentes que amava e o seu fero desejo
de se manter viva extinguiu-se após tamanha perdição. Com o espírito
ensandecido pela culpa morreu na cela ao lado, gritando por um perdão que não
lhe pudeste verdadeiramente assegurar. Por tudo isso, terás de arranjar maneira
de escapar. Talvez voltando atrás... Serás capaz de sentir de novo, uma a uma,
as sensações dos dias anteriores àquele em que o alcaide fechou a porta desta
cela? Tens quarenta anos, entraste aqui ainda sem os teres feito. Escuta o teu
coração, revive as suas aventuras. A tua memória não está cativa e ainda
consegues sorrir face ao reflexo das lembranças. Apodera-se de ti uma alegria
quase febril por sentires que irradiam de ti todas as gargalhadas, todos os
abraços, todos os beijos, todas as lágrimas de então. Afinal o que é o tempo? O
tempo é apenas o frágil elo que une os acontecimentos. Está na tua mão teceres
um casulo de imagens e entrares lá para dentro. Rodeia-te das paisagens da tua
infância, passeia-te pelo braço do teu amado. Esforça-te, Sara! Sobretudo como
aumentam as fendas ao escutares a sua voz... Não vês como as, lembra-te da tua
avó. Repara paredes se desintegram e perdem solidez? As paredes não deixaram de
ser de pedra, mas vão-se parecendo com uma muralha de fumo transparente.
Precisas de exercitar o dom da visão até uma profundidade ainda maior de
nitidez. Imagina uma pena fantástica que escreve sobre a tua memória todas as
histórias que a tua avó te contou. Força-te, Sara, pois só deténs os poderes da
memória para te defenderes dos algozes. Sente os acontecimentos e os seus
lugares a atravessarem as fronteiras do tempo. O teu pensamento e a eternidade
podem ser uma e a mesma coisa. As imagens deslizam e, seguindo-as para onde
elas te levam, poderás ir para longe.
A memória da avó
de Sara
A minha avó,
chamada Ester Baltasar desde o tempo do seu baptismo em pé, a minha avó cujo
coração nunca olvidava que o seu nome era Ester Abecanar, atribuíra-se o
encargo de me contar a história do nosso povo. Também tomou como sua a
incumbência de me doutrinar na fé dos nossos antepassados a partir do momento
em que as palavras deram sinal de si na minha mente. Para além disso contou-me
todas as peregrinações e desventuras da sua família desde o tempo em que haviam
fugido de Sevilha. Como tantos outros judeus, o seu pai escapara para Portugal
após a expulsão decretada em 1492
pelos reis mui católicos dona Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Ao
referir-se à fuga da sua família, os olhos da minha avó deslizavam, como se
estivesse a rever algo que ultrapassava as palavras humanas. Aquelas lágrimas
não pertenciam só aos seus olhos, pois eram as mesmas que já haviam sido
choradas por todo o povo judeu em amarga diáspora». In Ana Cristina Silva, As Fogueiras
da Inquisição, Grandes Narrativas, nº 396, Editorial Presença, Lisboa, 2008.
ISBN 978-972-233-939-1.
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