domingo, 23 de agosto de 2015

As Máscaras da Paixão. Maria Lucília Meleiro. «Aprender com o passado, estar atento ao presente e prever o futuro. E preciso procurar parecer, por não poder ser. O que atrairia ali, com tanta regularidade e persistência a real personagem?»

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«Os reis são homens como os outros; têm desejos, paixões e defeitos, dias de desânimo, e têm de satisfazer esses desejos e ceder ao império das paixões e seguir a via errónea dos seus defeitos, mas devemos também lembrar-nos que existe para eles uma lei moral, mais severa do que para os outros, porque quanto mais elevada é a posição maior é a influência do exemplo». In Pedro V

O Ser e o Parecer
«Todas as noites ele aparecia no teatro com a extrema perseverança de um apaixonado. A sala estava sempre cheia, animada e fremente, bordejada ao longo de todas as varandas laterais por damas que luziam em elaboradas toaletes e faiscantes jóias, acompanhadas por cavalheiros trajando irrepreensíveis casacas verdes ou cor de bronze, coletes de cetim branco bordado a pérolas ou a prata e escarpins luzentes, de verniz. Eram, na sua maioria, ricos comerciantes, burocratas da alta administração, plutocratas bafejados pelas vitórias das guerras liberais, mas também havia membros da antiga nobreza feudal, arruinada e decadente, que perdera muitos privilégios com a revolução, mas ostentava ainda com orgulho os anéis do tio inquisidor ou a glória de um parente que fora vice-rei na Índia.
A mocidade dourada, frequentadora do café Marrare, no centro de Lisboa, marcava presença com as suas alvas camisas de bretanha, de exuberantes folhos, afogados em volumosas gravatas de três voltas, ao lado do dandismo espirituoso e subtil dos emigrés e as suas pitadas de rapé sorvidas com regularidade, ostentando modos elegantes e roupas cosmopolitas, uma consequência do seu exílio temporário por motivos políticos em países desenvolvidos como Inglaterra ou França. Todas as noites ele aparecia, estranhamente indiferente ao que se passava na sala e mesmo até no palco. Era muito jovem, tinha boa aparência e estava elegantemente vestido, embora com muita sobriedade; por vezes vinha fardado de militar de alta patente. Uma melena de cabelo louro escuro pendia-lhe sobre a fronte e os seus olhos de um azul profundo, acinzentado, vagueavam melancólicos, sem se fixarem em nada nem em ninguém, como se estivesse totalmente entregue aos seus pensamentos.
Ocupava o camarote real, e ao ser reconhecido pelos presentes, um frémito de frases ciciadas percorria toda a sala e muitas cabeças se viravam na direcção daquela presença sempre inesperada, mas paradoxalmente regular. Nesse momento os militares presentes agitavam-se nas suas fardas com golas bordadas de palmas douradas e botões luzidios, pensando numa conspiração, e os burgueses enriquecidos de um dia para o outro, ávidos de títulos de nobreza e honrarias entreolhavam-se desconfiados, interrogando-se se não estaria em jogo o seu quinhão no governo e altos cargos administrativos, prémio das suas vitórias nas guerras liberais entre 1820 e 1837. Os polícromos damascos, musselinas, organdis e cambraias de Nápoles dos vestidos das damas pareciam ganhar mais cor e as jóias da moda que cintilavam nos decotes quadrados à império pareciam dardejar chispas, não no terror da perspectiva de uma conjura, mas na avidez de excitantes novidades e episódios romanescos, que os jornais do dia seguinte comentariam, e havia-os em profusão e para rodos os gostos, alimentando boatos e maledicências, criando e destruindo reputações.
A verdade é que, terminado o segundo acto, e pouco depois do início do terceiro o rei retirava-se. Todas as noites. O que atrairia ali, com tanta regularidade e persistência a real personagem? Todas as noites. E novamente, na plateia e camarotes, damascos, musselinas, organdis e cambraias de Nápoles agitaram-se. Era do conhecimento geral que o jovem monarca não era um apreciador de teatro». In Maria Lucília F. Meleiro, As Máscaras da Paixão, Ésquilo, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-983-490-3.

Cortesia de Ésquilo/JDACT