Alexandria.
Egipto. 1799
«(…) Teria o estranho perfume desencadeado
aquela crise? Seguramente que afectara L’Étoile. A desorientação e as vertigens
que sentira desde que entrara no túmulo só entretanto se haviam começado a desvanecer.
Este local está amaldiçoado!, gritou Abu, lançando o rolo de papiro para dentro
do caixão, sobre os cadáveres mumificados. Temos de sair já daqui! Precipitou-se
então para fora da câmara, correndo pelo primeiro corredor abaixo. O túmulo está
amaldiçoado, repetiram os jovens trabalhadores com vozes trémulas ao mesmo tempo
que seguiam as pisadas de Abu, empurrando-se e acotovelando-se uns aos outros pela
estreita entrada. Os eruditos seguiram-lhes o exemplo. O ajudante de campo de
Napoleão auxiliou o general, que recuperara as suas faculdades, mas continuava fraco,
escoltando-o para fora da sala, deixando L’Étolle sozinho na câmara funerária
do perfumista e da mulher que com ele fora sepultada. Curvando-se sobre os
amantes, agarrou no papiro que Abu lançara para o sarcófago, adicionou-o ao conteúdo
da pequena caixa dourada e, por fim, enfiou a caixa dentro da sua bolsa de couro.
Nova Iorque, nossos dias. Terça-feira, 10
de Maio
Quando Jac L’Etoile tinha catorze
anos, a mitologia salvara-lhe a vida. Recordava-se de tudo acerca daquele ano. Em
especial das coisas que tentara esquecer. Era dessas que tinha uma recordação mais
vívida. Mas era sempre assim, não era? A adolescente que a esperava naquele momento
à porta do estúdio de televisão na West Forty-ninth Street não devia ter mais de
catorze anos. Alta e esguia, desconjuntada, mas animada e ágil como um potro, deu
um passo em frente e estendeu uma cópia do primeiro livro de Jac, Caçadores de Mitos. Dá-me um autógrafo, Miss L’Étoile? Jac acabara de sair de
um talk show matutino onde estivera a
promover o seu livro, mas não era uma celebridade. O seu programa, exibido num canal
por cabo e com o título do livro, explorando a génese de lendas, tinha menos de
um milhão de espectadores, portanto, encontros como aquele eram ao mesmo tempo inesperados
e gratificantes.
O carro que alugara estava parado
junto ao passeio, com o condutor à sua espera. Mas não importava que estivesse um
pouco atrasada. Ninguém, à excepção dos fantasmas, a esperava para onde ela se dirigia.
Como te chamas? perguntou Jac. Maddy. Jac conseguiu sentir a água-de-colónia, leve
e com travo a limão, que a adolescente usava. Entre as adolescentes e os aromas
cítricos parecia existir uma eterna atracção. Destapando a caneta, Jac começou a
escrever. Por vezes é bom saber que os heróis existem mesmo, disse Maddy em voz
baixa. Que as pessoas podem fazer coisas extraordinárias. A ruidosa e buliçosa
rua frente ao Radio City Music Hall era um local estranho para uma confissão,
mas Jac acenou com a cabeça e sorriu para Maddy num gesto de cumplicidade. Alimentara
a mesma esperança durante demasiado tempo. Quando Jac começara a explorar a
génese dos mitos, viajando até antigos sítios arqueológicos por todo o mundo,
visitando museus, bibliotecas e colecções privadas, investigando as ruínas de civilizações
há muito desaparecidas, imaginara que as suas descobertas seriam um
entretenimento e um ensinamento. Com esse objectivo, procurou e encontrou os factos
no âmago das grandes histórias, buscou e descobriu as versões em tamanho real
dos gigantes das lendas.
Explicou
como certas façanhas gloriosas se tinham revelado acções insignificantes, por vezes
acidentes. Jac deu a conhecer que raramente as mortes dos heróis da mitologia eram
grandiosas, metafóricas ou meteóricas. O que sucedera fora que os contadores de
histórias haviam exagerado a realidade para criar metáforas que instruíam e inspiravam.
Acreditava que fazia os mitos tombarem do seu pedestal, ao reduzir-lhes a sua importância.
Mas acabou por fazer precisamente o contrário. A prova de que os mitos, na verdade,
se baseavam em factos verídicos, que uma qualquer versão dos antigos heróis, deuses,
fados, fúrias e musas havia realmente existido, concedeu esperança aos leitores
e telespectadores. E era por esse motivo que os fãs escreviam cartas e notas de
agradecimento, que o programa de televisão ia na segunda temporada e que adolescentes
como Maddy lhe pediam autógrafos. E era por isso que Jac se sentia uma fraude. Jac
sabia que acreditar em heróis podia salvar a vida, mas também sabia que
acreditar na grandiosa fantasia podia destruí-la com a mesma facilidade. Não disse
isso a Maddy. Terminou a dedicatória, devolveu o livro, agradeceu-lhe e meteu-se
no carro que a aguardava. Quarenta e cinco minutos mais tarde, o aroma a pinheiros
e aos rebentos das árvores-de-judas informaram Jac de que chegara ao cemitério de
Sleepy Hollow, aninhado no luxuriante vale do rio Hudson. Levantou os olhos do que
estava a ler no preciso momento em que os colossais portões de ferro forjado se
começavam a ver. Quando o carro atravessou a entrada, Jac desapertou e voltou a
atar a fita que lhe afastava os rebeldes caracóis do rosto». In M.
J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do
Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.
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