A situação de Goa
«(…) Eis a cidade morta, a solitária Goa! Seis templos alvejando entre
um palmar enorme! Eis o Mandovy-Tejo, a oriental Lisboa! Onde em jazigo régio,
imensa glória dorme. Se há parte do que foi o império português sobre a qual se
tenha escrito, em prosa como em verso, Sem sombra de dúvida que essa é Goa. Tal
profusão é, em boa parte, fruto da pujança intelectual do próprio território,
que, dentro do nosso espaço cultural, quiçá, apenas nos Açores encontra
paralelo. Em Goa cruzou-se a tradição intelectualista dos brâmanes de antanho
com o gosto pelas letras das ordens religiosas, presentes em força naquela que
se desejava ser a Roma do Oriente; o resultado foi uma produção histórica e
literária multímoda e abundante, que as exíguas dimensões do território não
deixariam prever. Quem se der ao trabalho de percorrer-com a vista os três
volumes do Dicionário de Literatura
Goesa, compilado por Aleixo Manuel Costa e recentemente publicado em
Macau, ficará por certo assombrado com a abundância do que se produziu em Goa.
Desde meados do século XIX que, dentro ou fora do pequeno enclave
lusitano, muitos, de uma ou doutra forma, se debruçaram sobre o seu passado:
reinóis uns, como Cunha Rivara e Tomás Ribeiro, ou luso-descendentes, como
Ferreira Martins e Germano Correia; goeses de pura cepa outros, como Néry
Xavier, Panduronga Pissurlencar e Bragança Pereira; para não falar já em
estrangeiros, como Boxer e Schurhammer. A uns moveram, quiçá, principalmente as
memórias gloriosas das façanhas bélicas de outrora, de que foi palco o mar fronteiro
a Goa; a outros, moveu antes a irradiação espiritual da Roma do Oriente donde a
missionação católica lançou para a China, para Timor, para o Japão e até para
rincões recônditos, como os reinos dos Laos e do Tibete; a outros, ainda, atraiu
a originalidade insólita daquele cadinho de díspares culturas, que ali se
souberam harmonizar numa síntese feliz, ou a multifária riqueza em bens de
espírito daquele duplo tesouro de civilizações, como Pierre Gourou o descreveu.
Recentemente, quando a história económica se tornou moda, começou
igualmente a aparecer quem, mais prosaicamente, se debruçasse sobre o seu papel
nas rotas do comércio mundial e sobre as diversas facetas da sua economia. Poucos
são, assim, dentro da história de Goa os campos de investigação que
permaneceram virgens até aos nossos dias. Não significa isso, é certo, que a
história indo-portuguesa esteja de uma vez para todas feita e que não haja em
tal domínio muito trabalho a fazer e mais ainda a refazer. Significa, sim, que
não é já fácil achar um tema inteiramente inédito, pois raros são os que, de
uma ou doutra perspectiva, não foram ainda abordados pelo labor
historiográfico. Quer-nos parecer que desses raros é o que constitui o mote do
presente estudo, e aí principalmente reside a sua originalidade.
A história institucional, jurídica e administrativa da antiga Índia Portuguesa
foi, de facto, já muitas vezes abordada. Cunha Rivara, Bragança Pereira e
Panduronga Pissurlencar publicaram um notável acervo de documentos que permitem
comodamente estudá-la sem ter de revolver penosamente os arquivos de Lisboa e
Goa. Embora nem sempre a história própria de Goa seja aí bem distinguida da do império
de que foi cabeça, podem mencionar-se alguns tentames de síntese nestes campos,
como a História da Administração da Justiça no Estado da Índia, de
Carlos Gonçalves Pereira, Les Finances
de l’Etat Portugais des Indes Orientales, de Vitorino Magalhães Godinho,
e os recentes estudos, ainda por publicar, de Vítor Conceição Rodrigues, sobre
a organização militar da Índia Portuguesa nos séculos XVI e XVII, para citar
apenas três exemplos». In Catarina Madeira Santos, Goa é a Chave de
toda a Índia. Perfil Político de 1505-1570, colecção Outras Margens, 1999, ISBN
972-8325-96-7.
Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Outras Margens/JDACT