A
sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) Lucrécia fez urna pausa e
observou ostensivamente a velha. Depois, ainda com uma ruga de preocupação na
testa, levantou a mão e perguntou: a mudança incomoda-te muito, Giulietta? A
mudança? Para Ferrara. Espero que não a consideres terrivelmente cansativa. Giulietta
não respondeu. Mudou de posição e, sem dar por isso, deslocou-se para o feixe
de luz que entrava pelo orifício da portada. Este atingiu-lhe o meio da cara e
do corpo, cortando-a ao meio. Eu..., eu não vou, respondeu. Lucrécia ficou a
olhar para ela. A sua mãe acha que é preferível a menina começar de novo, com
uma mulher mais nova que cuide de si. Giulietta falou num tom categórico, e a
firmeza da sua decisão foi óbvia para Lucrécia. Mas... Sentiu o calor das
lágrimas nos olhos, mordeu a ponta da língua e engoliu várias vezes em seco
entes de falar. Mas..., eu quero que venhas comigo. Eu sei, cara.
É mesmo certo que...? Giulietta fez um sinal afirmativo. Mas porquê? E por que
razão ninguém me avisou antes? Sem
resposta. Lucrécia susteve o fôlego, sem saber se lhe apetecia chorar
ou enfurecer-se com a ama. A enormidade das alterações que estavam iminentes agigantou-se,
imparável e inexorável como um batalhão de soldados em marcha; alterações
súbitas e reais para ela como nunca haviam sido até então. Lucrécia nem sequer
admitira a hipótese de Giulietta não ir com ela para Ferrara. Olhou para a
velha e viu, provavelmente pela primeira vez, a enfermidade provocada pela
idade. Um pouco chocada, imaginou o crânio por debaixo da pele enrugada, os
ossos cobertos pela carne magra, e depois, como se a dor fosse sua, sentiu a expectativa
da perda com a mesma intensidade de Giulietta.
Abraçou a ama, ciente da rigidez óssea
da velha, e ambas permaneceram assim durante algum tempo. Afastando-se e obrigando-se
a sorrir a Giulietta, Lucrécia perguntou, com uma leveza propositada: Onde queres
que ponha o pobre vestido estragado? Giulietta enxugou os olhos com um lencinho
de linho. Naquele velho baú junto da porta. Não se incomode a dobrá-lo, cara.
Não tem conserto. Lucrécia pegou no vestido roto, aproximou-se do grande baú trabalhado
junto da porta e levantou a tampa. Houve qualquer coisa inesperada que lhe
chamou a atenção. Oh!, exclarnou ela. Oh, Giulietta, vê o que encontrei aqui. Não
sabia onde estava..., há meses que não o via!
Giovanni coçou o pescoço da égua
e sorriu quando ela franziu o focinho, deleitada, chegando-se prra a frente e
semicerrando os olhos num abandono ocioso. Levantou a cabeça no momento em que um
jovem corpulento com uns vinte e cinco anos se dirigiu para o pátio das cavalariças,
sorrindo ao ver a expressão do pónei. Ela gosta disso, não gosta?, perguntou ele.
Pietro. Giovanni baixou-lhe a cabeça. Pietro estendeu a mão, pô-la em concha
debaixo do nariz da égua e obrigou-a a virar a cabeça para ele. As éguas são como
as mulheres... Se as acariciarmos no sítio certo, fazem tudo por nós, disse, com
um ar de autoridade. Olhou para um lado e para o outro e, depois de certificar de
que estavam sós, acrescentou: passei uma boa parte da noite a acariciar a jovem
Maria Fabbro em todos os sítios certos. A filha do Paolo?
Pietro fez um sinal afirmativo,
com um sorriso presunçoso. Giovami engoliu em seco. Veio-lhe à mente a imagem da
filha do albardeiro, apetecível como um pêssego maduro. Era frequente ver Maria
nas imediações das cavalariças e, sempre que tal acontecia, dava consigo a pensar
demasiado em seios. Sentiu-se corar. Espero que o pai não descubra, acrescentou.
Eu não daria muito por ti se isso acontecesse. Pietro sorriu outra vez, pôs um
fardo de feno ao ombro, atravessou o pátio a assobiar, passou por debaixo do lintel
e entrou no armazém da forragem. Giovanni deu uma última palmadinha ao seu pónei.
Começou a encaminhar-se lentamente para o casarão, dando um pontapé numa pedra e
levantando um nuvem de pó». In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O
que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.
Cortesia de Planeta/JDACT