«O
problema todo começou com a sorte nas cartas. Assim como com a decisão de me
alistar no exército a caminho de uma
invasão maluca que parecia ser a melhor solução para a enrascada em que me envolvi. Ganhei uma jóia e
quase perdi minha vida; então, aprenda uma lição: jogar é um vício. Mas
acredito que também seja algo sedutor, natural e parte da vida, como respirar.
O próprio nascimento pode ser comparado a um lance de dados, uma mera questão
de sorte para definir se um bebé será um servo e o outro nasça para ser rei. Na
onda da Revolução Francesa, os riscos tinham simplesmente aumentado demais, com
advogados gananciosos ditando o ritmo e o pobre rei Luís perdendo a cabeça. Durante
o Reinado do Terror, o fio da guilhotina fazia da existência em si uma
questão de pura sorte. Então, com a morte de Robespierre, veio um alívio insano
e casais felizes dançavam sobre os túmulos do cemitério de Saint Sulpice
ao som de um novo passo alemão chamado valsa. Agora, mais de três anos depois,
a nação mergulhou em guerras, na corrupção e na constante busca pelo prazer. As
fardas marrons sem vida deram lugar a uniformes brilhantes e modestos
colarinhos, enquanto mansões saqueadas passaram a servir como salões e bordéis
para ávidos intelectuais. Se o conceito de nobreza ainda era repugnado, a
riqueza revolucionária criava uma nova aristocracia. Uma elite de
auto-proclamadas mulheres maravilhosas
desfilava pelas ruas de Paris para ostentar sua luxúria insolente em meio à deplorável condição pública. Os
bailes eram frequentados por donzelas vestindo fitas vermelhas no pescoço,
zombando da guilhotina. A cidade contava com quatro mil casas de jogo, algumas
tão simples que os jogadores levavam seus próprios bancos dobráveis, e outras
tão opulentas que os aperitivos eram servidos em bandejas dignas das catedrais,
além de possuírem banheiro interno.
Meus
colegas norte-americanos consideravam ambas as práticas igualmente
escandalosas. Os dados e as cartas não param: creps, vinte e um, faraó, biribi,
e por aí vai. Enquanto isso, a inflacção era calamitosa e ervas daninhas
cresciam nos jardins abandonados de Versailles. Para completar, exércitos
marchavam pelas fronteiras da França. Vivendo tudo isso, arriscar uma boa quantia
e torcer por um nove em Chemin de Fer parecia tão natural e tolo quanto a
própria vida. Como eu poderia saber que aquela aposta me levaria a Bonaparte? Se
eu fosse um pouco supersticioso, poderia ter levado em conta que a data, 13
de Abril de 1793, era uma sexta-feira.
Mas era Primavera na Paris revolucionária, o que significava que, pelo novo
calendário instituído pelo Diretório, era o vigésimo quarto dia do mês de Germinal
no Ano Seis e que o próximo dia de descanso ainda distava seis dias, e não
dois.
Nenhuma
reforma havia sido tão inútil quanto aquela. A arrogante medida do governo de
descartar a cristandade fez com que semanas passassem a ter dez dias em vez de
sete. A intenção dessa revisão era substituir o calendário papal por uma
alternativa uniforme de doze meses de trinta dias, cada um com base num antigo
sistema egípcio. Até edições da Bíblia foram desmontadas para se abastecer a produção
de cartuchos de papel para armas nos dias sombrios de mil setecentos e noventa
e três, enquanto a semana bíblica fora guilhotinada para dar lugar a meses divididos
em três décadas de dez dias cada, com o ano começando no equinócio de Outono, e
a inclusão de cinco ou seis feriados para balancear o idealismo com a órbita solar.
Não satisfeito com a reformulação do calendário, o governo introduziu um novo
sistema métrico para pesos e medidas. Existiam ainda propostas para uma nova
duração do dia com exactos cem mil segundos marcados no relógio. Razão,
razão! E o resultado foi que todos nós, incluindo eu, cientista amador,
investigador da eletricidade, empreendedor, franco-atirador e idealista
democrático, não sabíamos mais quando eram os domingos. O novo calendário era
um tipo de ideia lógica imposta por pessoas inteligentes, mas que ignoram completamente
o hábito, as emoções e a natureza humana.
Tudo
isso, com certeza, apontava para o fracasso da Revolução. Parecia um profeta?
Para ser honesto, ainda não estava habituado a pensar na opinião pública de
modo calculista. Eu aprenderia isso com Napoleão. Pois é, meu pensamento estava
dedicado à contagem das cartas no jogo. Se eu fosse um homem da natureza,
poderia ter deixado os salões para me deliciar com os primeiros aromas do ano e
passear entre as folhas verdes, e, quem sabe, me dedicado a contemplar as
senhoritas no jardim de Tuileries ou, pelo menos, as prostitutas de Bois
de Boulogne. Eu escolhi as mesas de jogo de Paris, aquela cidade gloriosa e suja
com seu perfume, poluição, monumentos e lama. Minha Primavera era à luz de
vela; minhas flores eram cortesãs, cujas roupas eram tão apertadas que seus
seios pareciam querer escapar desesperadamente; e meus companheiros formavam a
nova democracia de políticos e soldados, nobres sem poder e comerciantes
recentemente enriquecidos, mas, todos, com uma coisa em comum: cidadãos iguais.
Eu, Ethan Gage, era o representante da luta norte-americana pela democracia nos
salões e mesas de jogos». In William Dietrich, As Pirâmides de
Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN
978-972-234-450-0.
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