A
sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) O primo sorriu-lhe. Pobre Giulietta!,
exclamou ele. És uma desilusão para ela.
Lucrécia ficou boquiaberta. Eu? És
um patife, Giovanni..., ela acha que tu é que tens uma influência péssima em mim,
se queres saber. A culpa é toda tua. De quê? Lucrécia pensou e depois respondeu:
De tudo. Não te enganas, disse Giovanni, escarvando o chão com o calcanhar. Lucrécia
deu-lhe um beijo na face. Anda, corre comigo. Lucrécia desatou a correr; Giovanni
apanhou-a com facilidade e juntos atravessaram à pressa os jardins. Um aroma intenso
a lavanda aquecida pelo sol intensificou-se quando as saias de Lucrécia roçaram
nos arbustos. Destruíste aquele canteiro, disse Giovanni, apontando com a cabeça
para uma série de plantas pisadas. A culpa é tua. Lucrécia encolheu os ombros. Já
te disse que a culpa de tudo é tua. Giovanni empurrou-a e ela tropeçou noutro canteiro.
Mais plantas esmagadas. Um cheiro pungente a tomilho. Recuperando o equilíbrio,
Lucrécia estendeu o braço para afastar o primo, mas ele escapou-se, correndo mais
depressa, e desapareceu numa esquina. As pedras bem calcetadas do caminho estalaram
debaixo dos pés de Lucrécia, que foi atrás dele, passando por baixo do arco
amplo com ameias que dava acesso ao pátio.
Giulietta encontrava-se num dos degraus
de pedra, um pigmeu em comparação com as grandes portas de carvalho. A velha fez
um esgar de censura ao ver os dois vultos a correr para ela, quase sem fôlego.
Olhando para Giovanni, Lucrécia viu-o esboçar um sorriso de troça antes de fazer
uma vénia a Giulietta com um floreado espalhafatoso. Aborrecida, a velha estalou
a língua e deitou-lhe um olhar fulminante. Ele endireitou-se e, sem dizer uma palavra,
fugiu para os estábulos a galope. Lucrécia viu-o afastar-se e em seguida virou-se
para Giulietta, com a cara a arder depois da corrida. A velha resmungava
entredentes, embora Lucrécia tivesse a certeza de que todas as palavras lhe
eram dirigidas. Giulietta estendeu um braço atrás das costas da rapariga e encaminhou-a
para a escuridão fria do vestíbulo. Aquele rapaz vai ser a minha morte, cacarejou.
Oh, é um... Todos os dias acontece mais uma coisa e nenhum de vocês aprende... e
repare no seu aspecto, e enquanto falamos estão a preparar o banquete, e... O banquete?
Sim, cara, o banquete. Quantas vezes é
preciso eu dizer-lhe que será esta noite? Ele
chegará ao anoitecer..., e olhe para si. Mete medo!
Ele? Lucrécia parou, de olhos arregalados.
Esqueci-me de que era esta noite. Giulietta agarrou-a pelos ombros, obrigou-a a
virar-se e inclinou-se tanto que o rosto de ambas ficou ao mesmo nível, com os olhos
brilhantes de preocupação. Com o nariz saliente e os olhos muito juntos, a ama fazia
lembrar a Lucrécia, tantas vezes, uma águia ansiosa. Giulietta afastou o cabelo
emaranhado da cara de Lucrécia. Sim, cara,
ele. O duque. Já não falta muito para desposá-lo, não é verdade? Tenho de ir mudar
de roupa, disse Lucrécia, e Giulietta estendeu-lhe uma das mãos encarquilhadas.
Lucrécia pegou nela e sufocou um lamento quando os dedos duros da velha lhe
apertaram a palma macia da mão. Afastou-se. O que é? Nada.
Mas Giulietta tinha virado a mão
para cima e visto com os seus próprios olhos. Fazendo estalar a língua outra vez,
incrédula, pespegou um beijo rápido e seco na esfoladela, virou outra vez a mão
de Lucrécia para baixo e deu-lhe uma palmadinha nos nós dos dedos com a outra mão.
Juntas, percorreram o corredor abobadado, desembocaram no pátio central, voltaram
a entrar em casa pelo outro extremo e subiram a escadaria larga que conduzia aos
quartos. Nos aposentos de Lucrécia, onde as portadas estavam fechadas devido à inclemência
do Sol, a luz era fria e difusa. No centro de cada portada, havia um pequeno orifício
redondo; uma lâmina de luz saída de cada orifício cortava o aposento na
diagonal, esguia e direita como uma lança de torneio. Lucrécia inclinou-se para
espreitar por um dos orifícios, com as mãos em concha à volta dos olhos, mas como
a luz excessiva do Sol não lhe permitiu ver coisa nenhuma, fechou-os e recuou.
Venha cá, cara, para lhe desfazer os atilhos, disse Giulietta. A pestanejar, Lucrécia
virou-se de costas para a ama e Giulietta começou a desapertar-lhe o corpete e a
cantarolar. Adoro essa canção, comentou Lucrécia. Canto-a desde que a menina era
bebé. Pergunto a mim própria se ele cantará
para eu ouvir enquanto me tira o espartilho, proferiu Lucrécia, falando mais
com os seus botões do que com Giulietta. Imaginou uns dedos desconhecidos a mexerem-lhe
nas costas e, ao espalmar as mãos na parte da frente do corpete engomado,
sentiu um formigueiro na pele da nuca. Ele cantaria? Diria alguma coisa? Rir-se-ia
consigo..., ou preferiria despir a sua nova esposa no meio de um silêncio expectante?
Lucrécia vislumbrou mentalmente os olhos sombrios do duque, o sorriso lento, e,
com um sussurro, o vestido escorregou e caiu-lhe aos pés no chão. Giulietta fez
urna pausa, mas não comentou». In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O
que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.
Cortesia de Planeta/JDACT