sábado, 29 de agosto de 2015

O Quarteto de Alexandria. Clea. Lawrence Durrell. «Reconstituir a realidade, escrevi algures; palavras presunçosas e temerárias com efeito, pois é a realidade que nos constitui e reconstitui na sua roda lenta. E, contudo, se o interlúdio nesta ilha enriqueceu…»

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«A primeira e mais bela qualidade da natureza é o movimento que constantemente a agita; mas esse movimento é simplesmente a consequência perpétua de crimes, e só deles se alimenta». In DAF de Sade

«As laranjas foram este ano mais abundantes e opulentas. Brilhavam nos seus ninhos de um verde-pálido, como lanternas embaladas pelo vento, aparecendo aqui e além por entre as árvores batidas pelo sol. Era como se quisessem celebrar a nossa partida da ilha, porque finalmente a muito esperada mensagem de Nessim tinha chegado como uma intimação para regressarmos ao mundo das trevas. Uma mensagem que ia atirar-me inexoravelmente de volta para a cidade que para mim tinha sempre pairado entre a ilusão e a realidade, entre a substância e as imagens poéticas que o seu próprio nome despertava em mim. Uma memória, pensei, que tinha sido falsificada pelos desejos e intuições e apenas semirrealizada no papel. Alexandria, a capital da memória! Todos os escritos que fui buscar aos vivos e aos mortos, até eu próprio me tornar uma espécie de pós-escrito de uma carta que nunca foi remetida...
Quanto tempo estive fora? Difícil calcular, pois os calendários dão poucas indicações sobre as eternidades que separam um eu de outro eu, um dia de outro dia; e na verdade vivi sempre, mental e emotivamente, em Alexandria. E página após página, pulsação após pulsação, fui-me abandonando ao organismo grotesco a que todos pertencemos outrora, vencedores e vencidos. Uma cidade muito velha, modificando-se sob as pinceladas de mil pensamentos assaltados pela dúvida e pelo desejo de encontrar um significado, uma cidade que procurava desesperadamente uma identidade; algures para o sul, sobre os promontórios sombrios e hirsutos da África, persistia a aromática verdade do lugar, a amarga e intragável erva do passado, a medula da memória. Eu empreendera outrora arquivar, codificar e anotar o passado antes de inteiramente perdido, pelo menos decidira fazê-lo. Falhei (seria uma tarefa desesperada?), pois mal embalsamava em palavras um dos seus aspectos logo a intrusão de novo conhecimento quebrava os moldes do quadro e tudo se desmoronava para se reajustar sob novos planos invisíveis e imprevistos...
Reconstituir a realidade, escrevi algures; palavras presunçosas e temerárias com efeito, pois é a realidade que nos constitui e reconstitui na sua roda lenta. E, contudo, se o interlúdio nesta ilha enriqueceu a minha experiência foi talvez devido ao fracasso total da minha tentativa de relatar a verdade íntima de Alexandria. Agora encontrava-me perante a natureza do tempo, essa doença de alma humana. Tive de admitir a minha derrota como cronista. E todavia, de forma bastante curiosa, o mero acto de escrever dotou-me ainda de outra espécie de amadurecimento, pelo próprio fracasso das palavras que se afundam e perdem uma após outra nas insondáveis cavernas da imaginação. Forma dispendiosa de começar a viver, sim; mas nós, os artistas, somos obrigados a nutrir as nossas vidas por meio destas estranhas técnicas de introspecção.
Mas, então..., se eu tinha mudado, que seria feito dos meus amigos, Balthaza, Nessim, Justine, Clea...? Que novos aspectos iria discernir neles depois deste lapso de tempo, quando novamente me visse enredado no ambiente da nova cidade, uma cidade em guerra? Eis uma pergunta para a qual não encontrava resposta. Tremia interiormente de apreensão como uma agulha magnetizada. Era duro renunciar ao terreno arduamente conquistado pelos meus sonhos a favor de novas imagens, novas cidades, novas disposições, novos amores. Tinha-me habituado a amar os meus sonhos da cidade como um maníaco... Não seria mais prudente, pensava eu, deixar-me ficar onde estava? Talvez. E contudo sabia que devia partir. Na verdade, nesta mesma noite, estaria já longe da ilha! O pensamento era em si próprio tão incrível que tive de pronunciá-lo em voz alta.
Desde a chegada do mensageiro tínhamos passado os últimos dez dias numa deliciosa antecipação; o tempo parecia querer colaborar connosco numa sucessão de dias azuis e mares tranquilos. Estávamos entre duas paisagens, sem querer deixar uma delas, mas ansiosos por encontrar a outra. Como gaivotas pousadas na beira de uma falésia. E já as imagens contraditórias se misturavam e pugnavam nos meus sonhos. A casa da ilha, por exemplo, com as suas oliveiras e as amendoeiras cor de prata queimada, onde se perdiam as patas vermelhas das perdizes... Clareiras silenciosas onde apenas se poderia encontrar a face caprina de um sátiro. A simples e luminosa perfeição das formas e das cores, as outras premonições que cresciam dentro de nós, não se podiam mesclar. (Um céu cheio de estrelas-cadentes, as marés cor de esmeralda nas praias desertas, o grito das gaivotas nos caminhos brancos do Sul.) Este mundo grego começava a ser invadido já pelos odores da cidade esquecida, promontórios onde os suados capitães do mar tinham bebido e comido até estalar os ventres, onde tinham saciado o desejo dos seus corpos nas escravas negras com olhos de sabujo. (Os espelhos, a doçura dilacerante das vozes dos canários cegos, o gorgolejo dos narguilés dos vasos cor-de-rosa, o cheiro a parchuli e incenso). Entredevoravam-se estes sonhos irreconciliáveis. E tornei a ver os meus amigos (não apenas como nomes) à luz diferente da certeza desta partida. Não eram mais as sombras da minha mente, nem mesmo os mortos. À noite percorria as ruas tortuosas, de braço dado com Melissa (situada agora algures para além do remorso, pois mesmo em sonhos eu sabia que ela tinha morrido); as pernas magras davam-lhe um andar oscilante. E, como era nosso hábito, caminhávamos muito unidos, as coxas coladas. E tudo agora me despertava uma grande ternura, mesmo o velho vestido de algodão e os sapatos baratos que ela usava nos dias feriados. Ela não se lembrara de disfarçar com pó de arroz a mancha azulada de um chupão que alastrara no pescoço... Então desapareceu e acordei com um grito de desgosto. A madrugada nascia entre as oliveiras prateando as folhas inertes». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Clea, 1960, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT