sábado, 29 de agosto de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «E ouvindo-a recitar esses versos, pondo em cada sílaba grega, deliberadamente irónica, uma espécie de ternura equívoca, descubro de repente o estranho e ambíguo poder da cidade, a sua paisagem composta de um único plano aluvial…»

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«(…) Era, se preferem assim, o namoro de dois espíritos prematuramente extenuados e que parecia ainda mais perigoso que um amor de base puramente sexual. Sabendo até que ponto ela amava Nessim, de quem eu próprio gostava enormemente, tal pensamento causava-me horror. Estendida ao meu lado, ligeiramente ofegante, os seus grandes olhos contemplavam o tecto onde voavam querubins de gesso. Disse-lhe então: … esta aventura entre um pobre professor e uma dama da alta sociedade de Alexandria não pode conduzir a nada. Isto vai acabar num escândalo mundano que nos separará porque serás obrigada a pôr-me de parte. Justine não gostava de ouvir as verdades. Voltou-se, descansou sobre um cotovelo, e, baixando os seus magníficos olhos perturbados sobre os meus, olhou-me demoradamente. Não temos qualquer alternativa neste assunto, disse ela naquela sua voz rouca que eu tanto amava. Falas como se pudéssemos escolher. Tudo isto faz parte de um plano preconcebido por qual quer ente que desconhecemos, talvez pela cidade ou por outra parte de nós próprios. Que sei eu? Revejo-a na modista, diante dos grandes espelhos múltiplos, dizendo: Olha! Cinco imagens diferentes da mesma pessoa. Se eu fosse escritor tentaria descrever uma personagem assim, através de uma espécie de visão prismática. Porque será que não podemos ver mais de um perfil de uma só vez?
Ela boceja e acende um cigarro; depois senta-se na cama e abraça os delicados tornozelos, começando a recitar lentamente, com um delicioso trejeito, os maravilhosos versos do velho poeta que falam de um amor muito e muito antigo, cujo encanto não suporta uma tradução. E ouvindo-a recitar esses versos, pondo em cada sílaba grega, deliberadamente irónica, uma espécie de ternura equívoca, descubro de repente o estranho e ambíguo poder da cidade, a sua paisagem composta de um único plano aluvial, o seu ar de perpétuo esgotamento e compreendo que ela é uma verdadeira filha de Alexandria; isto é, nem grega, nem síria, nem egípcia, mas uma híbrida, um complexo.
Que intensidade põe ela ao recitar a passagem em que o velho lança fora a antiga carta de amor que tanto o comoveu e exclama: … entro tristemente no terraço; que nada venha distrair o curso dos meus pensamentos, nada, nem mesmo o espectáculo dos movimentos insignificantes da cidade que amo, das suas ruas e das suas lojas! E levanta-se, abre as persianas e debruça-se sobre a varanda que deita para a cidade recamada de luzes, todo o seu ser tenso sob a carícia do vento do entardecer que chega das planícies da Ásia; e, durante um breve lapso, nem mesmo tem consciência do corpo que lhe pertence. Príncipe, Nessim é, evidentemente, um gracejo; pelo menos para os comerciantes que o viam passar, digno e imperturbável, no seu grande Rolls cor de prata. Para começar, ele não era muçulmano mas sim copta. Todavia, o epíteto convinha-lhe admiravelmente, pois havia algo de principesco no desdém que Nessim afectava perante a cupidez nos lucros, que é um traço comum a todos os alexandrinos, mesmo nos mais ricos. E, contudo, os elementos que formavam a sua reputação de excêntrico nada tinham de particularmente notável para aqueles que tinham vivido fora do Levante. Só lhe interessava o dinheiro para gastar; não tinha nenhuma garçonnière e parecia ser absolutamente fiel a Justine, coisa de facto inaudita. No que respeita ao dinheiro, era tão rico que lhe causava uma espécie de nojo, e nunca trazia nenhum consigo. Gastava à árabe e passava vales aos comerciantes; os restaurantes e os night-clubs aceitavam os seus cheques. As suas dívidas eram regularmente pagas, e todas as manhãs, Selim, o seu secretário, percorria de carro o itinerário que o amo seguira na véspera, para liquidar todos os débitos acumulados.
Este estilo de vida, que derrotava os hábitos de servilismo e o espírito provinciano dos habitantes da cidade, era considerado por estes uma espécie de desprezo à europeia. Mas não se tratava de hábitos adquiridos pela educação; Nessim tinha nascido com eles e, neste pequeno universo, cuja única razão de existir parece ser o ganho, não encontrava nenhum alimento para o seu desejo de doçura e contemplação. Não existia homem menos autoritário do que ele, e, contudo, os seus actos provocavam comentários porque vinham marcados com o forte selo da sua personalidade. As pessoas sentiam-se inclinadas a atribuir as suas maneiras a uma educação estrangeira, quando, de facto, a Alemanha e a Inglaterra o tinham profundamente desconcertado, tornando-o mais tarde incapaz de se adaptar à vida da cidade. Da primeira, tinha colhido o gosto pela especulação metafísica, em contradição com a natureza do espírito mediterrânico, ao passo que Oxford tinha tentado transformá-lo num pedante e apenas conseguira desenvolver as suas tendências filosóficas a ponto de o incapacitar para o culto da sua arte predilecta: a pintura. Pensava e sofria muito, mas faltava-lhe a força necessária para ousar, que é a condição essencial para realizar seja o que for». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia de PdQuixote/JDACT