sábado, 29 de agosto de 2015

Quarteto de Alexandria. Baltasar. Lawrence Durrell. «Seis meses decorreram, um silêncio reconfortante porque me segredava ter o meu crítico ficado satisfeito, confundido. Não posso afirmar que tenha esquecido a cidade mas a verdade é que deixei adormecer a sua imagem»

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«(…) Estou a esforçar-me por me aproximar dos factos... Na sua última carta, Baltasar escrevia-me: Penso em si frequentemente e com um certo humor macabro. Você isolou-se nessa ilha, com, segundo pensa, todos os dados sobre as nossas pessoas e existências. Vai certamente julgar-nos no papel à maneira dos escritores. Gostaria de ver o resultado. Deve ficar muito distante da verdade: quero dizer, daquelas verdades que eu lhe podia contar a nosso respeito, e porventura até a seu respeito. Ou das verdades que Clea poderia contar (encontra-se em Paris e deixou de me escrever). Vejo-o sabiamente debruçado sobre o Moeurs, os diários íntimos de Justine, Nessim, etc, imaginando que a verdade se encontra nessas páginas. Erro, enorme erro! Um diário é a última fonte a que o historiador deve recorrer para conhecer o seu autor. Ninguém se atreve a ser sincero no papel: pelo menos quando se trata de amor. Sabe quem era o homem a quem Justine amava verdadeiramente? Pensa que esse homem era você, não é verdade? Confesse!
Por única resposta enviei-lhe o enorme maço de papel que lentamente se tinha ido dilatando sob a minha pena preguiçosa e a que tinha dado um pouco abusivamente por título o nome de Justine, embora Cahiers tivesse servido perfeitamente. Seis meses decorreram, um silêncio reconfortante porque me segredava ter o meu crítico ficado satisfeito, confundido. Não posso afirmar que tenha esquecido a cidade mas a verdade é que deixei adormecer a sua imagem. Contudo, é claro, ela continuava lá, e continuaria, suspensa no meu espírito como a miragem que tantas vezes deslumbra os viandantes. Pursewarden descreveu o fenómeno nos seguintes termos: Encontrávamo-nos ainda a duas ou três horas de distância do ponto onde se começaria a avistar terra quando subitamente o meu companheiro gritou qualquer coisa e apontou para o horizonte. Vimos, invertida no céu, uma imagem em tamanho natural da cidade, luminosa e trémula, como pintada em seda poeirenta, mas rica em pormenores; a minha memória reconstituía todos os locais, o Palácio Ras El Tin, a Mesquita de Nebi Daniel, e assim por diante; o conjunto formava uma alucinante composição pintada com pinceladas de orvalho; ali ficou no céu por tempo considerável, talvez vinte e cinco minutos, antes de se dissolver na neblina do horizonte. Uma hora depois apareceu a cidade real, um pontinho que se dilatou até às dimensões da sua imagem.
Os dois ou três Invernos que passámos nesta ilha foram solitários, invernos austeros e ventosos e verões escaldantes. Felizmente a criança ainda é demasiado nova para sentir como eu a necessidade de livros e de contactos humanos. É feliz e activa. Agora na Primavera chegam as grandes calmarias, os dias de premonição, sem perfumes, sem marés. O mar doma-se a si próprio e fica atento. Breve se ouvirá o zangarrear das cigarras acompanhar a flauta dos pastores no alto dos rochedos. Os nossos únicos companheiros são a tartaruga desajeitada e o lagarto. Devo explicar que o nosso único visitante regular do mundo exterior é o paquete de Esmirna que, uma vez por semana, dobra a ponta de terra a caminho do sul, sempre à mesma hora e à mesma velocidade, pouco depois do poente. No Inverno os temporais tornam-no invisível, mas agora sento-me à espera dele. Para começar ouve-se apenas o pulsar desmaiado dos motores. Depois a criatura desliza e aparece a dobrar o cabo, rasgando no mar a sua linha de espuma sedosa, brilhando na obscuridade da noite diáfana do Egeu, condensada, mas sem contornos, como uma nuvem de pirilampos movendo-se à flor do mar. Avança depressa, e desaparece demasiado depressa para além da outra ponta da enseada, deixando atrás de si um fragmento de qualquer canção popular, ou a casca de uma tangerina que no dia seguinte encontrarei arrojada à praia onde costumo ir tomar banho com a criança». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1958, Baltazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT